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Por que o oriente? A simplicidade do Tao contra os dualismos da tradição ocidental



Tenho estudado o taoísmo. Menos pela filosofia da academia que pelo meu daimon esotérico. Mas o que me encanta nas tradições orientais em geral, e no taoísmo particularmente, é o inesperado parentesco com os pensamentos que me têm orientado no mundo dos saberes europeus. Não há influência direta, em geral. Quando muito, em Jung – mas convenhamos que, para fazer o que tenho tentado fazer do seu pensamento (e que me parece bastante próximo de tais tradições), é necessária uma leitura ridiculamente específica e crítica dos textos junguianos. Heidegger, Deleuze, Lacan... estes dificilmente teriam citado Lao-Tsé.
Ainda assim, a filosofia taoísta, tanto quanto os pensamentos que me reinventam, poderia ser descrita inteiramente como uma filosofia da negatividade. No alto da escada das coisas sagradas, o Tao. Por um lado, absoluto; pelo mesmo lado, vazio. Já passei por isso aqui antes, e algum dia pretendo mergulhar de cabeça, mas por ora só repito que, de alguma maneira, o todo e o nada se confundem. Pelo menos, se sobrepõem em seu status de impossível. Se, à época do Natal, brincava com o cristianismo para esvaziar o sagrado¹, agora encontro por completo o que ali pretendia dizer, compondo a ideia de Tao. Fundamento dos fundamentos, nadidade que sustenta toda manifestação possível. Ao meu ver, é aí que está a suprema experiência do sagrado: no mistério do mundo, neste resto vazio de toda experiência possível. Um resto que denuncia a impossibilidade do todo e, quem sabe, se sustenta no nada impossível.
Pelo seu próprio caráter vazio, o Tao também não pode ser estável. Explico. Seja como absoluto, seja como vazio, o Tao traz em si o impossível. Uma grandiosidade do mundo que transcende toda experiência singular. Ao mesmo tempo, o que há do Tao é o que está expresso no mundo. Diz Lao-Tsé: ao princípio do Céu e da Terra chamo “Não-ser”. À mãe dos seres individuais, chamo “Ser”. (...) Pela origem, ambos são uma coisa só, diferindo apenas no nome (Tao-te King, seção 1). Não é que haja antes o Tao, depois o mundo. Ao contrário, este obscuro restante na experiência é traço da própria experiência. Em termos curtos, o Tao é uma transcendência imanente! Ainda assim, não há manifestação do ser que não seja parcial (afinal, ser já implica opor-se a não-ser) – nenhuma manifestação conclui uma totalidade. Por isso mesmo, não se estabiliza. Nenhuma manifestação parcial do Tao pode dar conta de ser completamente o que é – para ser radical, não há o completamente. E quando o parcial se estabiliza, morre. Algo do Tao só pode se produzir na parcialidade quando em movimento.
Não se trata, porém, de coisas que mudam, como numa sequência temporal em que era X, se transformou em Y, depois Z... Não, muito pelo contrário. O que tento dizer, valendo-me do oriente, é que não há X, Y ou Z. Ou melhor, pode até ser que haja, mas a transformação é mais primordial – está mais perto do Tao do que a estabilização parcial e morta de estados identitários. Falo do princípio budista da impermanência, falo do I no I Ching (traduzido como mutação) e, por que não?, falo de filosofia da diferença e esquizoanálise.
De certa maneira, ouso dizer que são estes os três pilares mais básicos que sustentam meu pensamento: negatividade, imanência e diferença (no espaço)/mutação (no tempo). Aí é que me fascino pelas tradições orientais. Mas aí também me encontro num impasse. Omiti até agora uma característica fundamental do Tao: o Tao é fácil e simples! Mais do que isso, Lao-Tsé chega a maldizer todo conhecimento excessivamente pensado e complexo. Aliás, tende a se afastar de tudo aquilo que se estabelece na coletividade humana. Não porque pense que o humano produz o mal e se afasta de Deus, como nosso Medievo tendia a fazer, mas porque está interessado na experiência mais primordial do humano. Em suma, considera que a lei moral e externa só se faz presente quando a experiência fundamental do Tao se perdeu, assim como deveres e acordos só surgem quando já há conflito posto. Também os pensamentos complicados só marcam presença quando se perdeu a experiência humana fundamental².
Por razões evidentes (chamadas Heidegger, Deleuze, Lacan...), meu tiro (de estudar o taoísmo) saiu pela culatra: do fácil e do simples, as filosofias que me rodeiam não têm nada. Como diria Fernando Anitelli, “a minha fé deu nó”. E como o zen paciente que sou (risos), faz algum tempo que estou parado olhando para o nó, tentando entender por onde o fio tem que passar. Lembrei-me de nossa história. Platão nos acostumou a pensar num mundo de essências a ser descoberto, externo à experiência sensível. O cristianismo nos fez pensar num Deus que (embora onipresente, são as contradições do discurso) está distante no espaço (num outro lugar chamado Paraíso) e no tempo (antes da criação ou depois do juízo final). Descartes nos legou a idealidade de um sujeito-razão coisificado e de objetos de concretude real a serem conhecidos. A ciência empírica fingiu se prender às coisas, mas ainda busca as verdades mais verdadeiras das coisas em suas identidades essenciais imutáveis – no fundo, ainda a coisa-em-si kantiana, também contraposta ao fenômeno.
Das mais diversas maneiras, em suas mais diversas apresentações, algum tipo de dualismo foi a base de toda a tradição ocidental. Sempre houve um e um aqui (sempre ilusório, o bem bom está sempre no ). Desde Nietzsche, sabemos que o está capenga – a morte de Deus tem muito mais que ver com paradigmas de verdade do que com religiões. E sabemos também que não podemos mais pensar o aqui da mesma maneira – afinal, sempre o pensamos na referência do . Todos estes ideais (de negatividade, imanência e diferença) vêm de um gigantesco esforço do século XX em des/reconstruir esta tradição e seus dualismos (esforço nada hegemônico, é preciso dizer). Especialmente na fenomenologia, podemos encontrar de novo um certo parentesco com o taoísmo: o “retorno às coisas mesmas”, desde Husserl, tem que ver com o valor da experiência propriamente dita, livre de verdades externas e encobridoras. Ao contrário do que temos ouvido desde pequenos, verdade está no aqui, não no .
De certa maneira, me parece que é a isso também que Lao-Tsé se refere: quanto maiores e mais complicados nossos conhecimentos sobre o mundo, mais distantes estamos da verdade da experiência propriamente dita. Pela retroação do significante, me recordo de como, já há algum tempo, me parece muito mais difícil explicar fenomenologia do que entender (e normalmente as dificuldades de entender têm mais a ver com as dificuldades de expressão de quem explica). Quando tomamos estes saberes como modos de vida – ou seja, quando, da ontologia à ética, da teoria à práxis, realmente fazemos um retorno às coisas mesmas – não há complicação no que dizem estas filosofias, por mais complexas e rebuscadas que sejam suas palavras.
Quanto à dificuldade da expressão, me parece que tem a mesma raiz da complexidade das teorias: nossa história, de novo. Toda nossa tradição é cheia de complexidades, estilos e bricolagens para manter seus dualismos suspeitos. Mas, por mais falaciosos que sejam, eles estão assustadoramente impregnados em cada um de nós, em cada uma de nossas instituições, em cada um de nossos hábitos... Desde o modo como damos bom dia na rua até a disciplina na escola, somos cheios de tradição³. É por isso que as teorias são complexas, e é por isso que a filosofia contemporânea assusta: outras lógicas, embora muito mais compromissadas com as experiências mais fundamentais, que em nada se parecem com nossos dualismos habituais. Romper com uma tradição complexa, infelizmente, exige a complexidade de desmontar seus argumentos. Por mais originários que sejam os fundamentos do Tao, se mandamos um ocidental simplesmente sentar e meditar para conhece-lo, receberemos tão somente as apropriações e deturpações capitalistas que já bem conhecemos com o budismo, por exemplo. É preciso construir uma nova postura ontológica.
Se, tanto quanto no taoísmo, o ideal da filosofia contemporânea tem a ver com devolver a verdade a seu plano mais fundamental – o das experiências primordiais – ela dificilmente poderia fazê-lo com a mesma simplicidade dos oitenta e um singelos poemas do Tao-te King. Então, recupero o título que dei a este texto: por que o oriente? Porque, por mais necessária que seja a complexidade de nossos pensadores, de nada adianta a academia por ela mesma. A potência de transformação ética e política destes ideais só vale se o pensamento de fato fizer tradição, se de fato orientar as massas. Teremos, sim, de encontrar caminhos mais acessíveis para a parte de desconstruir a tradição, mas buscar outras histórias e outros mundos, ainda próximos de uma ontologia mais honesta, pode ser útil para descolonizarmo-nos de nossa branquitude dualista. Para isto, a simplicidade do Tao parece útil.

¹ Especial de Natal: amai ao teu próximo como a ti mesmo (https://entredois-phmendonca.blogspot.com/2018/12/especial-de-natal-amai-ao-teu-proximo.html)
² Pessoalmente, me vejo obrigado a responder que a coletividade, o laço social, a cultura, fazem parte da experiência fundamental humana. Mas há mérito no ponto de Lao-Tsé: trata-se de uma questão de implicação e singularização, em contraste com a impessoalidade de leis, mitos e saberes externos.
³ É preciso dizer que, no hemisfério sul, repensar a tradição é, mais do que um ato filosófico, um ato decolonial.

Pedro H. Mendonça

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