A história de nossa terra é uma história de sofrimentos. Sem dúvida, houve por aqui quem se deu bem no meio disso. É daí que saio, porque quem inventou o racismo foi o macho branco europeu, e quem o perpetua por aqui é um certo tipo que parece ter parado no tempo não ter saído do lugar. A pergunta é: o que faz com que até hoje a branquitude tenha medo da voz dos povos desde sempre silenciados? Comecemos pelo começo: quem inventou o racismo não é o mesmo português que o manteve por aqui. Quem, pra começo de conversa, se deu bem com essa história, voltou para casa - e levou junto nossa madeira, depois nosso açúcar, depois nosso ouro, depois nosso café. Quem instaurou o carrego colonial - como chama um pessoal que faz teoria a partir dos axés - voltou pra Portugal. Quem veio pra ficar, veio porque não era bem quisto lá. E a minha hipótese é que esse é o trauma fundante da violência da branquitude brasileira - nisso, talvez quem venha da história possa me ajudar a falar melhor.
Sem panos quentes. Pelo contrário, quero é entender a violência pra poder desmontá-la. Mas o branco que ficou, desde as tais das capitanias, é português mandado embora de sua terra, recusado pelo rei, que chega por aqui tomado de ódio. Uma espécie de desdobramento de um tipo ressentido, no sentido nietzschiano. Ressentido é aquele que, da violência da opressão, se volta contra o opressor e quer o seu poder. Mas o ódio do ressentido, pelo menos desse ressentido português que chega por aqui matando, sequestrando, torturando - esse ódio, ao invés de ferramenta de libertação, de enfrentamento de seu senhor, se torna um modo de ser, uma lida generalizada com o mundo. Aliás, por isso que é um tipo. Esse português, que chega aqui satisfeito em finalmente mandar e desmandar, matar e desmatar, é uma espécie de impostor, senhor que nunca deixou de ser escravo - daí todo esse medo, todo esse desespero de afirmar o seu poder, sua voz, seu mando. Em algum lugar, ele sabe que esse lugar não é dele, daí tanta violência pra fazer que seja… às vezes, chega a parecer que deu certo... Mais alguém lembrou do jovem branquelo dos grandes centros revoltado com as políticas afirmativas? Qualquer semelhança não é mera coincidência.
Agora, do outro lado, vem os sofrimentos que o português ressentido re-criou cada vez de novo, fingindo ser igual ao Dom Fulano que voltou pro norte levando o ouro (mas nada a ver com a madame que só descobre, se é que descobre, que é latina quando vai pras europa, viu). E disso tudo, vem rainha Nzinga escravizada, o reino de Matamba vive sofrido por aqui; vem orixá que desce de Oyo no chão da senzala, porque vê bem, Xangô não vai deixar barato - e nada de Tia Nastácia! Vem com força, achando suas brechas pra sobreviver. É mel de Oxum e é folha sagrada, que curam o lombo rasgado pela chibata. É Zumbi, e tantos outros, vai pro mato, reinventa quilombo do lado de cá (porque já havia por lá!). E no mato, encontra povos que já eram dessa mata e também estão salvando os seus. De tanto choro de dor e grito de revolta, surge um Mestre Malunguinho, caboclo preto que salva na mata e salva no cativeiro. Grada Kilomba e Djamila Ribeiro já ensinaram: se botam máscara na escrava Anastácia (que não tem nada de Tia Nastácia!), é preciso falar nos buracos da máscara até arrebentar.
Depois vem outros tantos. Depois de tanto matar, vão dizer que não tem mais Tupinambá, tão em extinção aqueles ditos canibais - mas aprendi com o professor Casé Angatu (tupinambá que tá vivinho da silva em Olivença, Ilhéus - BA) que no rito sagrado só se alimenta de quem é muito admirado, e nunca que tupinambá ia botar pra dentro carne de covarde português. Só que também aprendi com ele a cantar que “tupinambá vai te pegar, vai te comer”. E vão dizer que tupiniquim, guarani e demais povos aqui de São Paulo são os docilíssimos que se juntaram ao português em troca de espelhinho, vão deixar de lado tudo que é enfrentamento e estratégia e tática de resistência - desde lá!
Vão fingir que não tem nada de indígena na cidade grande, vão fingir que preto não trabalha por vadiagem… Ah! e aí vem a cereja do bolo. Simbora embrancer o Brasil, pra ser uma nação evoluída. Mas ninguém planejou nada não, viu? Uma mistura muito linda, espontânea, cada um com seu quinhão, sem estupro, sem matança… e todas as culturas (que se finge ser só três, porque só se sabe bem das brancas) numa composição harmônica, cada um dá seu melhor. Mas é preciso perguntar: melhor pelos critérios de quem?
Etnocídio! Epistemicídio! Genocídio! Tudo isso muito bem escondido, muito bem recalcado - eis a neurose brasileira. E não sou eu quem falou, aprendi com a mestra Lélia Gonzalez.
Pois é, minha gente, essa é nossa história. Eu nem ia escrever tanto dela, mas não pude me conter. E é bom que seja assim, porque eu não inventei a roda, mas quanto mais bocas contarem essa história de um jeito diferente do que a professora da escolinha ensinou, melhor. Agora ainda vem a pergunta: tá, cadê a psicanálise e a subjetivação no meio disso? Ora, não acabei de dizer? Eis a neurose brasileira. Mas que é mesmo a neurose? Se um sintoma é uma formação de compromisso, a raiz da neurose está num conflito; mas não qualquer um. Por um caminho fácil, a gente pode definir que o problema está entre desejo, pulsão, sexualidade, e a proibição estabelecida pela cultura, internalizada num superego. Reconstruo, de um jeito um pouco mais político (e não é sem uma gotinha de esquizoanálise): a neurose está nas proibições (superego) e normatizações (ideal de eu), que ditam o certo e o errado, mas nunca dão conta de tudo que pulsa num corpo, de tudo que pulsa na vida, de tudo que pulsa no povo. Não é um conflito entre iguais, portanto, é um ponto amarrado que desgraça tudo que não se amarra nele. Desgraça aquilo que, sem ele, iria muito-que-bem-obrigado, com suas idas e vindas, encontros e desencontros, no acontecer da vida. Ora, não é isso que Freud “descobriu” no inconsciente? Nisso, nossa terra tem algo em comum com as mulheres chamadas de histéricas que Freud finalmente escutou.
Não é à toa que tem algo em comum. O pessoal que tem teorizado sobre um pensamento decolonial hifeniza sempre: modernidade-colonialidade. Disso, aqui me interessa que a estrutura do eu moderno é correlata à estrutura da colonialidade. Então sim, o que fazia aquelas ditas histéricas sofrerem se calca nesse mesmo ponto de amarração, de eus, supereus e ideais… quer dizer, no mesmo ponto de amarração que o sujeito moderno-colonial imposto sobre as terras daqui. Mas o que Freud escutou lá basta para gente olhar pra essa estrutura do lado de cá?
O que foi sendo descrito em psicanálise como a constituição do sujeito é precioso, mas não pode ser naturalizado. Não acho que Freud inventou as historinhas de criança que contou, muito pelo contrário, acho que realmente as escutou. Mas o que fez que as escutasse? Não é curioso que o drama infantil de Édipo combine tão bem com a família branca patriarcal?
Então jogamos Édipo fora? Nada disso! Mas é preciso entender que o que Freud escutou, escutou de seu tempo. E muito permanece ainda hoje. É preciso entendê-lo não para repudiar as teorias sobre a sexualidade infantil, mas reconhecer que o que acontece ali são processos sempre históricos de subjetivação. Não escolho essa palavra à toa. Prefiro dizê-la do que dizer “constituição do sujeito”, porque Foucault e depois Butler - com seu jeito peculiar de juntar Foucault e psicanálise - legaram algo que a língua francesa ensinou para eles. Sujeição (por causa de subjection em Butler) ou, melhor que isso, subjetivação, é o termo que encontramos para traduzir assujettissement lá de Foucault: palavrinha que consegue juntar assujeitamento com tornar-se sujeito. Subjetivação é este processo de ir definindo modos de ser, sempre e já de saída entremeados por assujeitamento. Só me torno quem eu sou em meio a jogos de força (o que Foucault entendia por poder) que vão me constituindo.
Faço este desvio porque psicanálise, mais que um corpo conceitual, é uma prática - e só é verdadeiramente praticada do lado de cá do Atlântico se levar a sério essas ideias. Aliás, ideias que não são novas para psicanalista nenhum, por mais conservador que queira se manter. Ora, complexo de Édipo não é um processo de inserção na cultura? Daí é fácil perguntar: como alguém pode querer - e continua querendo - pensar isso sem a cultura, sem a política?
Primeiro pela via do espelho, do reconhecimento que diz “tu és (...)”, depois pela via das leis e normas que dizem “tu deves (...)” ou “tu não deves (...)” - nesse percurso, que a psicanálise soube escutar tão bem, um pedacinho de carne que chora vai metabolizando o mundo, e transformando alimento em palavra e palavra em alimento. Por esse processo, eu me torno quem eu sou, por efeito da e atuando na cultura em que me insiro. Aqui, me junto com uma passagem que foi o que me inspirou a começar a escrever, um texto de Daisy Wajnberg, sobre o axioma “a verdade tem estrutura de ficção”¹, inserido no Ideias de Lacan, organizado por Oscar Cesarotto². Trata-se da verdade sempre semi-dita, porque sempre calcada nesse discurso do Outro, que me constitui, e segue:
Assim, a cura analítica posta em marcha sobre um desejo de saber - saber da sua história ou, se quisermos, da tradição em jogo na origem do sujeito -, só pode se dar no regime próprio da transmissão oral, em que a palavra mesma funciona como garantia de autenticidade. E o testemunho da sua veracidade fica fundado no que o Outro se constitui como o lugar em que o significante se coloca, isto é, naquilo que centra o inconsciente como o discurso do Outro. (p. 170)
Até aqui, nada muito novo, algo como o que eu vinha dizendo, mas surgem termos interessantes. Para além de tratar a psicanálise como uma transmissão oral - o que já dá pano pra manga pra falar em uma psicanálise decolonial -, vem aí que “saber da sua história ou, se quisermos, da tradição em jogo na origem do sujeito”. A origem do sujeito e a tradição ali amarradinhas, e mais ainda, essa palavra “história” aí no meio, que a gente nunca sabe bem se é história pessoal ou história coletiva - uma falsa alternativa, na verdade, porque uma e outra andam coladinhas, e a minha história é a história que contei ali acima (mais uns pedaços que não couberam), que é a história de cada pessoa nascida e vivida ou morrida nesse Brasil. A minha neurose, e a de cada paciente que atendemos, é essa mesma neurose brasileira, vivida em suas múltiplas facetas. Aliás, cujo conflito raramente é vivido de um lado só, porque raramente os pedaços dessa história estão isolados numa pureza artificial.
E o texto parece que vai tomando uma radicalidade, dando nome pra algo que sempre esteve na psicanálise, mas quase nunca foi levado a sério. A autora vai dizendo que a verdade se estrutura como ficção na sua verbalização, no tempo de sua verbalização, na acontecência de sua verbalização. E sua conclusão: a verdade do sujeito é um dito epocal (a autora diz “épico”, mas trata-se de epos do mesmo jeito). E aí nos dá de mão beijada:
Poder-se-ia, então, afirmar, que a verdade seria estruturada como ficção afiliada ao épico, nessa recitação do sujeito que, ao falar, constitui esse Outro absoluto, revelado como “discurso de outrora na sua língua arcaica, e mesmo estrangeira”. Discurso da tradição, portanto, em que o sujeito se situa demarcado desde sua origem numa linhagem de ancestralidade. (p. 170-171)
Ancestralidade. Foi essa palavra que mobilizou tudo isso, foi ela que me fez partir de onde parti: a história da nossa terra é uma história de sofrimentos. Se as histéricas de Freud têm sua origem numa linhagem de nobres, reis e bruxas queimadas, depois burgueses e operários, pais de família e mães recatadas - bom, do lado cá, além disso tudo, tem muita história a ser contada. História inclusive que talvez nunca possa ser contada, já que vozes foram silenciadas e documentos foram queimados. Mas que resta como página em branco a ser sempre re-redigida na neurose brasileira de cada um e cada uma de nós. E para não perdemos o ânimo de trabalhar nessas terras, encerro como encerra Daisy no seu texto:
Ora, mas se nesse livro já escrito falta precisamente esse capítulo censurado - que é o que o sujeito aprende a reconhecer como seu inconsciente -, é porque na leitura processada durante a análise o sujeito participa até certo ponto da sua escritura. Ele reescreve assim sua história ao se deparar com a página em branco, pelo que cabe ao analista-escriba lavrar a escritura que autentica uma autoria para o sujeito. (p. 171)
¹ O axioma lacaniano diz “a verdade tem estrutura de ficção” - mas o inconsciente fez teoria melhor do que eu poderia fazer e me rendeu a pérola: a verdade tem estrutura de fixão.
² Referência completa: WAJNBERG, Daisy. “A verdade tem estrutura de ficção”. In: CESAROTTO, Oscar. (org). Ideias de Lacan. São Paulo: Iluminuras, 2015. pp. 167-171.
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