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Curriculum... vitae?


Maria Luiza M. Paiva

Como me escrever? E como escrever sem ser de mim? E que é a escrita se não a conversa com outro desconhecido? Não um outro qualquer, nem genérico, nem mesmo suposto… mas, sim, desconhecido. Em cada passo que dei em minha escrita - literária ou acadêmica - descobri cada vez mais que escrever é não saber, não só desse outro que me lê, mas sobretudo de mim mesma. Aprendi cada vez mais a sentar em frente à folha em branco sem ter a mais vaga ideia do que vai aparecer ali. Aqui.

Como disse, são coisas que aprendi da minha escrita literária e acadêmica. O problema é que a academia não lida muito bem com isso. Na verdade, a universidade não suporta não saber. E a grande UNIficação do seu saber está nisso: o universitário (no masculino, de propósito) é regido incessantemente pelo seu saber sempre inconcluso, mas sempre prepotente, porque sua inconclusão é insuportável, e é justamente isso que o move. Falar na universidade desde outro lugar é não só um desafio, mas talvez mesmo um risco - especialmente um risco para nós… já volto a esse nós.

Concluí algum tempo atrás uma especialização cujo subtítulo dizia: clínica da cultura¹. Não se trata de um consenso entre aqueles que organizam e ensinam no curso, mas creio que alguns concordarão comigo: fazer uma semiótica psicanalítica, uma clínica da cultura, não pode se reduzir a aplicar a psicanálise como uma teoria interpretativa ou um conjunto de conceitos às questões da cultura. Isso é inútil. Mais do que isso, é uma certa aberração acadêmica. Não tem porquê, há teorias da cultura e sistemas semióticos suficientes para isso, já feitos para isso. Fazer semiótica psicanalítica, se se trata mesmo de uma clínica da cultura, não tem a ver com a psicanálise como teoria, mas com nós analistas, com nosso ser analista. Fazer uma clínica da cultura tem de ser interrogá-la enquanto analistas. É fazer semiótica desde este lugar peculiar de analista, que não é neutro, mas é esvaziado de alguma coisa - precisamente do saber prévio e da própria pretensão de saber algo. É interpelar a cultura; perguntar, não responder.

Uma coisa me chama atenção aqui enquanto escrevo: estou falando da peculiaridade de discursar na universidade desde algum lugar peculiar. Fazê-lo desde o lugar de analista é, pelo próprio interesse da academia, um desafio e uma batalha, mas essa formulação, que me vem muito naturalmente, já diz algo mais: desde, construção frasal particularmente hispânica, e não é à toa. É natural para mim, porque já é quase um lugar comum para o pensamento decolonial latinoamericano: pensar desde a América Latina. Améfrica Ladina, para honrar nossa Mestra Lélia González - de sobrenome curiosamente hispânico, mas uma mulher preta muito brasileira. 

Para nós (volto a nós, que nos arriscamos), muitas vezes, na clínica e na universidade, será preciso falar desde outro lugar - analítico, com certeza, mas bem mais substancial que algo como um “semblante de objeto a”. Vou contar uma historinha - o que se tornou um estilo meu nesse tempo em que estive afastada das publicações aqui… um estilo e uma epistemologia. Aliás, é preciso e precioso o momento que volto a publicar neste espaço, e é bem simbólico que venha com um texto como este. Momento preciso e precioso, porque novidades estão por vir, mas ainda não é tempo delas.

Que seja, minha história conta que, já há algum tempo, fui convidada para produzir um artigo, um capítulo a ser publicado numa coletânea. Como sempre, (apesar de se tratar de um texto sobre a recusa do caráter patriarcal da linguagem, escrito por uma travesti) sua edição passou por difíceis negociações frente às recusas da academia de qualquer linguagem que não seja de sua UNIversidade. Difíceis, mas não impossíveis. Para mim, alguns pontos eram inegociáveis. Poucos. Até deles abri mão, quando, na reta final, me foi pedido um minicurrículo, que foi recusado. Dizia assim (faz mais de ano, não está atual):

Maria Luiza é travesti, mãe de santo e psicóloga pela PUC-SP. Especialista em Semiótica Psicanalítica – Clínica da Cultura também pela PUC-SP e especializanda em Fenomenologia Decolonial e Clínica Ampliada pelo Nucafe. Atende em clínica particular e na Escuta Pública de Psicanálise, além de realizar em paralelo trabalhos corporais pela MTC. Junto com Mãe Aninha de Oxum, toca a Casa das Palhas e dedica-se, nos estudos e nas práticas, às intersecções entre saúde, corpo e cultura.

No e-mail seguinte, o “minicurrículo” não era mais chamado assim. Era uma “biografia”, e não seria aceita. Constaria dela tão somente o que me desse crédito como o autor de um trabalho acadêmico. Sim, no masculino. Minha decisão ali foi que abriria mão mesmo do que considerava inegociável no texto, desde que não se alterasse o modo como me apresento. Do contrário, nada de publicação. Foi o que ocorreu, evidentemente, nada de publicação, mas sequer negociamos a biografia. Meu pedido para que a mestra, doutora e pós-doutora editora se retratasse pelo erro no tratamento de gênero foi considerado “inquisitorial”, e assim se encerraram as negociações.

Então, reformulo meu ponto de partida: como me escrever? É possível para uma travesti escrever? É possível escrever sem se passar por macho? Como me escrever nesse mundo? Como me inscrever? A academia tem medo de nós. Gosto do Preciado: somos monstros que vos falam². Nossa monstruosidade chega antes dos nossos títulos acadêmicos, e por isso mesmo em qualquer apresentação minha, travesti e mãe-de-santo, ou pelo menos makumbeira, vêm na frente da graduação. Quando entramos pela porta das casas da ciência, nossos marcadores sociais são vistos antes dos nossos dizeres. Por isso, escrever desde a América Latina, escrever desde a minha travestilidade, escrever desde meu chão de terreiro acrescenta algo ao meu discurso de psicanalista: não só recuso o saber da UNIversidade, mas o interrogarei desde meu semblante de objeto a, sim, mas mais ainda desde meu semblante monstruoso de travesti latina e makumbeira. O saber que tenho a dar… ou melhor, o saber que tenho a falar (porque não se trata de mercadoria) é outro. Não é UNI, não é uno. Não tem o ponto final, nem as reticências da universidade. Tem ponto de interrogação? Às vezes, de exclamação! 

Tem eu mesma! E não me cobre neutralidade, porque não acredito nela, nem para a clínica, nem para a ciência. Aliás, vocês também não acreditam nela, a não ser que se trate da pseudoneutralidade dos homens brancos em seus escritórios de Paris. Quando qualquer uma de nós falar, seja preta, trans… muitas vezes, basta ser mulher. Quando qualquer uma de nossas dissidências falar, vocês dirão: “é subjetivo demais”, “não tem rigor”, “essa é a sua experiência”. Não temos validade científica, não temos validade acadêmica. E não sei minhas irmãs, mas eu nem as quero. Sou tudo isso e muito mais, sou o monstro que vos fala, e vocês mesmos sabem disso, fazem questão de reiterar. Meu saber não é o da UNIversidade, e a vida me formou travesti e makumbeira muito mais que psicóloga. O que tenho a dizer e fazer é muito pouco fruto do estranho recorte que é minha formação acadêmica. Devo tudo à vida, e se me apresento assim, é porque um curriculum vitae na América Latina não pode ser um curriculum pars vitae. Minha vida não tem partes, minha fala não tem partes, minha escrita não tem partes. A Academia fechou as portas para o mundo lá fora - não precisa muito para ver isso - mas se entramos, entramos Todas. 


¹ Semiótica psicanalítica - clínica da cultura, Cogeae, PUC-SP.

² https://revistas.ufpr.br/petfilo/article/viewFile/88248/48711

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