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Que corpo para a psicanálise?


Tenho pensado muito sobre o corpo. A prática da psicanálise online tem me mantido nesse último ano e meio numa espécie de zona de conforto, em que se fala mais com a cabeça do que com o corpo. Sintoma meu, que sempre me fez pensar de mais e fazer de menos, falar de mais e sentir de menos, mas todo sintoma, ao mesmo tempo que nos amarra, nos empurra para fora de si. Corpos esquecidos falam. Ora, não foi dos corpos negados e recalcados, reacendidos em sintoma histérico, que nasceu a psicanálise? Esse empuxo pra fora do cabeção - ou melhor, para mais dentro de uma cabeça encarnada - me levou a escrever recentemente sobre isso, e espero publicar logo.

Falo da psicanálise online, porque de resto há uma certa contradição na psicanálise. A cena analítica, o divã, a associação livre… tudo isso parece fugir do corpo, como se o significante não fosse palavra encarnada. Ao mesmo tempo, a velha máxima de O eu e o isso, “o eu é antes de tudo um eu corporal”, tanto quanto essa pulsão limítrofe entre a animalidade do corpo e a abstração da mente e, como disse, os sintomas originais da histeria freudiana - tudo isso nos leva sempre de volta a uma espécie de “quem fala é o corpo”. Se o divã já nos dá um álibi para esquecer que, por trás da voz da associação, tem um corpo ali deitado, as telas parecem deixar que a gente se perca ainda mais.

Isso que tem urgido, de um corpo falante, de uma clínica encarnada, tem me levado de volta à graduação. Quando, na PUC, eu estava no núcleo de corpo, naquele oceano junguiano de práticas corporais, fora dali eu me afastava pouco da psicanálise. Lembro de um comentário sobre Reich e Pethö Sándor, que pareciam falar de um trabalho muito legal, mas que descombinava da ética da psicanálise.

Bom, isso já dá o que falar. Sem entrar nos meandros da ética da psicanálise (Lacan já nos deixou todo o Seminário 7 pra isso), vou com sua tradução mais direta: trata-se de uma ética do desejo. E foi pela encarnação desse desejo que fui escrevendo o artigo que pretendo publicar em breve. Eu queria mostrar que, sim, “o eu é antes de tudo um eu corporal”, mas que este eu-corporal não tem carne. A passagem freudiana fala expressamente numa projeção psíquica da superfície do corpo. Pele. Representação psíquica de um contorno fechado e acabado de si. Certamente, não é para este corpo que a ética do desejo aponta. Ao contrário, aponta para o inacabamento de si, e o que fala, o que nos permite falar, não é que haja uma representação psíquica do eu. Ao contrário, nada é mais antagônico ao simbólico lacaniano do que uma noção referencial de linguagem, isto é, uma noção que pensa um signo como representação de um referente externo objetivo sobre uma superfície mental. Com Lacan, se falo, é porque algo não se representa.

Lá, eu recorri a Deleuze, em Lógica do sentido, para mostrar a linguagem como um incorporal, tal como o entendiam os estoicos. Trata-se de um dualismo, mas não tanto assim: de um lado, corpos materiais e estados de coisas, que servem de causas entre si. E o que causam são efeitos, estes incorporais, que não são substantivos ou adjetivos (como corpos e estados), mas verbos. Incorporal é o que acontece aos corpos e por efeito dos corpos - e disso, em Deleuze, virá toda uma filosofia do Acontecimento. Disso virá muito do que se torna, mais tarde, o devir, tal qual no encontro entre a faca e a pele, o devir-faca da pele não é se transformar em faca (como uma primazia dos corpos daria a entender, um trânsito de um ponto a outro), mas o próprio abrir-se da ferida. Mais romanticamente, árvores não são verdes, mas verdejam num devir primaveril. Assim também a palavra - ao menos, a palavra plena, palavra que, mais do que simplesmente designar um fato, expressa e institui subjetividade, desejo.

Por outro lado, a novidade de Deleuze para os estoicos é que os incorporais contraefetuam sobre os corpos. Agem como “quase-causas” para os corpos, é o que dirá Deleuze. Ora, quem já se emocionou com música ou poesia sabe muito bem do que se trata. Lá, eu dizia: se não fosse assim, não haveria cura pela fala em nossa clínica, nem a encantadora efetividade das macumbas em nossas terras brasis. Não haveria eficácia simbólica, para usar um termo de Lévi-Strauss, por mais que seja ainda uma descrição ainda bastante dualista. Quer dizer, eu dizia lá que a eficácia não é do simbólico sobre o Real, mas no simbólico no Real, e vice-versa.

Lá, aprendendo com certas noções que tomei de empréstimo às nossas macumbas, quis mostrar que nossa palavra, ou melhor, o significante, é materialidade Real (embora nunca materialidade estanque empírica), e que essa acontecência do Real é condição sine qua non para o simbólico. Ora, é assim que, numa cura pela fala, podemos falar de algo como uma ética do desejo: só há desejo ali onde o Real fura o simbólico, e a palavra da associação livre é exatamente aquela que se permite abalar por isso. Do contrário, por mais que seja palavra, será imaginária e estará enredada nas identificações que deram no problema - vulgo queixa - em primeiro lugar.

Ora, não há simbólico que não seja furado. É justamente porque na palavra sempre passa algo mais que a designação, que a palavra é corpo e que todo acontecimento corporal pode agir como palavra. Aliás, não é aí que se dá o ato analítico?


Só que há problemas menos complexos - talvez mais angustiantes - a serem tratados no corpo. Até agora estou aqui falando de como uma ética do desejo não pode ser desencarnada, de como acontecimentos corporais podem e devem fazê-la operar. Aliás, fazem! Mesmo numa ortodoxia que foge do corpo, que recusaria até o último minuto tocar seu paciente: não é o divã uma técnica corporal? Agora, fazemos tudo isso operar - e esse é o mote central de qualquer análise de neurose clássica - porque temos em mente uma espécie de desidentificação. A ética da psicanálise, para ser uma ética do desejo, precisa fugir… não, não exatamente fugir, mas sempre abrir uma possibilidade além das identificações imaginárias. Neste sentido, entendo - e concordo com - quem diga que práticas corporais podem ser antagônicas a uma ética assim. Bom, depende de como as usamos. Aliás, o mesmo vale para o divã e para a associação livre - que também são corporais!

Não é à toa que postulamos como critério ético este movimento de desidentificação. O sintoma neurótico por excelência é fruto de fixações imaginárias mal sucedidas… se é que há as bem sucedidas. A acentuação destes sintomas e a própria necessidade de haver psicanálise nos fins do século XIX são, elas mesmas, fruto da crise deste sujeito moderno, cartesiano, muito bem identificado consigo mesmo. Ele não se sustenta. Entrou em crise, e segue cada vez mais. E, por mais que seja um alívio se livrar dessa modernidade tacanha, isso não é bom. Acho que ainda não inventamos outra subjetividade. Mais: carecemos de outra subjetividade desde as invasões das Américas, já que quaisquer outras possibilidades foram literal e/ou simbolicamente assassinadas. Algo sobrevive, e é nosso trabalho inventar uma psicanálise que possa se aliar a este reavivamento¹ - mas isso é assunto para outro momento.

Falo disso porque, por um lado, muito da psicanálise - e mesmo da psicanálise branca em terras brancas - tem se dado conta de que, sim, a crise do sujeito moderno exigiu uma libertação das identificações imaginárias, mas esta mesma crise - se acentuando e ganhando tons neoliberais, midiáticos e globalizados - tem dado origem a sintomas outros. Aliás, não só sintomas, mas estruturas. Tem-se discutido os casos limítrofes - borderline - os atossintomas, e até a freudiana melancolia. Tudo isso ultrapassa um limiar² em que o problema não é mais ter que ser A, B ou C, mas um poder ser tudo, nunca ser nada. O que poderia soar como liberdade para as interpretações mais tacanhas de um existencialismo ingênuo, na prática se mostra como despadaçamento, quebra, ruína de um quase-sujeito. “Destroços” é o significante que tem aparecido numa análise por aqui.

Só que os destroços que a psicanálise do Norte vem notando há poucas décadas, já estão aqui no Sul há séculos. Dizia Enrique Dussel que o ego cogito cartesiano depende do ego conquiro das navegações. Não há estabilidade do sujeito moderno sem que toda a instabilidade característica da existência se expresse como violência aqui do outro lado. Não há identidade - branca e masculina - sem violência para tudo que não é branco e homem.

Se a psicanálise branca vai se dando conta só agora que às vezes é preciso dar carinho - isto é, que não caminhamos para a desidentificação quando o próprio existir está ameaçado de aniquilamento real ou simbólico - por outro lado, nossa terra sempre nos confrontou com outros contornos. Contornos que, elitizada, nossa psicanálise nem sempre precisou enfrentar, mas que estão aí. Estão em Nise da Silveira, e estão em Lélia González. Estão na nossa sempre inacabada reforma psiquiátrica, e estão na psicanálise pública que se refez na América Latina. Eu sempre disse que os trabalhos de AT que fiz me legaram traços muito peculiares na clínica. Traços de corpo, de presença, de entrega.

Hoje vejo que estes traços são traços de Brasil. De uma supervisão recente, aparece o jogo de palavras: luta e melancolia. Do eu perdido de si da melancolia, uma versão curiosamente viva, mas ressentida. Uma mulher negra, envolvida em suas lutas políticas, cujo sofrimento vai se mostrando amarrado num lutar contra, mas que como tal, ainda segue perdida na violência de uma série de perdas, enredada num não-lugar, transmitido de geração em geração, e herdado no nascimento e na morte da mãe. É preciso lutar contra muita coisa, com certeza, mas só faz sentido, se com isso, lutamos por algo. Para dizer “eu luto por mim”, é preciso antes rasgar por entre as violências um espaço para ser esse eu.

No artigo que comentei, eu dizia: se este eu-antes-de-tudo-corporal é uma projeção da superfície do corpo, pele portanto, é preciso recheá-la com vísceras, que pulsam, digerem, embrulham e falam. Quando não há pele, porém, ou quando está rasgada, seja pela veloz instabilidade neoliberal, seja pela chibata de quinhentos anos, então o corpo que é preciso fazer é mesmo pele. Quando só se habita no não-lugar, mais que destruir lugares fixados, é preciso dar lugar. Quando a estabilidade de ser foi recusada e violentada, é preciso permitir ser e até ajudar a ser. Isto não é antiético e não é antipsicanalítico. É condição para desejar.


¹ Subjetivação e ancestralidade: para fazer psicanálise em terras brasileiras: <https://entredois-phmendonca.blogspot.com/2021/07/subjetivacao-e-ancestralidade-para.html

² O inconsciente me presenteou com um “miliar” - interprete quem quiser.


Pedro H. Mendonça 

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