Pular para o conteúdo principal

Isso não é tudo: movimentos de imanência e transcendência entre psicanálise e Oriente


Estou partindo aqui de pensamentos que vêm, sim, da clínica, mas também e principalmente do fato de que meus cuidados e autocuidados transitam entre as macumbas, as práticas orientais, e a psicanálise. Com isso, é fácil dizer que estou transitando nas interfaces entre cuidado/saúde, subjetividade e cultura - como esse trânsito se efetiva, aí não é tão fácil. Também é necessário dizer que se trata de subjetividades encarnadas, de corpos que se movimentam, cuidam e se cuidam - mas esse assunto vem mais pra frente. Mas o que me empurra pra esse texto é: afinal, o que meditação tem a ver - ou pode ter a ver, ou nada tem a ver - com psicanálise? Não quero comparações fáceis - e vazias - nem muito menos recusas fáceis - e mal pensadas.

Lembro de já ter ouvido por vezes coisas do tipo “gozo pleno é o que querem”. Bom, que descuido de Freud ter falado em nirvana pra falar de pulsão de morte também, não? Essa recusa, que acusa uma espécie de utopia do gozo pleno, padece do mesmo mal de boa parte das recusas de uma psicanálise prepotente e fechada em si: recorre a um conceito (dissimuladamente) moralizado, que diz tudo e não diz nada ao mesmo tempo. Onde raios está o tal do gozo, afinal? A psicanálise parece gostar dele mais do que a própria neurose que sua impossibilidade inaugura. Gozo é um conceito importantíssimo, que rompe paradigmas: rompe dualismos e monismos, construcionismos e culpas individuais, etc etc. Mas de nada adianta dizer “isso é gozo” como se fosse algum tipo de explicação. Não, isso não diz nada: tudo é gozo. Está em toda parte, mas não basta em parte alguma. Menos ainda quando se coloca esse “pleno” depois do gozo… quem já viu o pleno? Como o gozo se movimenta, isto é, o que o discurso faz com ele, é tudo que interessa.

É aqui que talvez possamos pensar algo com meditação - palavrinha problemática também - e psicanálise. Mais do que vazio, plenitude ou mindfullness, quero pensar meditação com a ideia de movimento. Uma palavrinha que foi se tornando importante conforme me volto aos budismos em geral é fixação. Diferente da meditação taoísta, onde por vezes pode querer dizer o contrário disso, fixação no budismo é a origem de todo problema. Aliás, aqui sim, tem mais gozo do que na própria prática de meditação. Vou dizer com as minhas palavras: fixação é se fixar num estado de coisas num mundo que é impermanente. Mas ainda mais: é se fixar na parte como se ela fosse o todo.

Aí a coisa se complica: há o todo? Sem elocubrações metafísicas: enquanto estamos nesse mundo, o que há são partes em movimento. Qualquer coisa que nos aponte uma totalidade, é sempre uma totalidade ausente, negativa. Não é à toa que o todo, o pleno e o vazio parecem sempre se confundir. E o material que nós temos para trabalhar - em psicanálise ou em meditação - é só esse, ora essa negatividade, ora a pulsão parcial. O nada e as partes, jamais o todo e as partes. E parte sem todo só pode estar em movimento. Nada limita, nada fixa, nada estabiliza. Nada se completa, e por isso estamos sempre em movimento - viu como meditação não tem nada a ver com ilusão de gozo pleno?

No quarto poema do Dao De Jing, Laozi começa: “o Tao flui sem cessar./ No entanto, na sua atuação, ele jamais transborda" (trad. de Richard Wilhelm). Tao, que é o absoluto - eis o que confunde as cabeças que só pensam em gozo pleno - é também o Caminho. Mas não como prescrição moral. Dizem que Tao é o caminho, o caminhante e o caminhar. O Tao flui sem cessar. Isso que é curioso: só pode fluir, já que sendo absoluto, jamais se totaliza. O absoluto que há - ou o pleno, como queiram - não é aquele da realização final ou do princípio inicial, mas tão somente aquele que se movimenta.

Aliás, não é à toa que a Paz, no I Jing é oposta à Estagnação. O Céu yang tende para cima, a Terra yin tende para baixo. Quando o Céu está acima e a Terra abaixo, estão nos seus estados finais e seu movimento tende a reforçar este estado: tem-se a Estagnação. No hexagrama da Paz, ao contrário, o Céu veio para baixo, a Terra foi levada para cima. Nosso pensamento ocidental poderia dizer: estão fora de lugar. O I Jing dirá: eis a Paz, não onde as coisas ficam paradas, mas onde tendem ao seu movimento mais espontâneo. Aliás, I Jing significa literalmente livro ou tratado das mutações.

Tudo no Taoismo tem que ver com fluxo: movimento e serenidade. Sentar-na-calma, o que o ocidente chamou de meditação, não é estagnação, mas movimento sereno de recolhimento. Não à toa que mestre Liu Pai Lin dizia que Tao Yin (o sentar-na-calma) e Tai Chi se complementam: a serenidade leva ao movimento, o movimento leva à serenidade. Nesse sentido, meditar é o completo oposto do tal mindfulness. É o contrário de atentar o foco a uma coisa só, embora isso possa ser uma estratégia inicial. Mas, entre o que dizem para iniciantes, gosto mais de coisas do tipo: trate seus pensamentos como ondas que vem e, tão naturalmente como vieram, logo se vão. Ou então: veja sua mente como um céu azul, nuvens de pensamento vem e passam. Não se atenha a mantê-los, não se atenha a evitá-los.

Naturalmente vêm e vão. No fim das contas, naturalidade é uma palavra importante para o Taoísmo. Mas esse “natural” não tem nada a ver com a natureza do ocidente. Tem a ver com Wu wei: não-ação. Muito diferente de inação, não-ação é não direcionar, não querer controlar, é deixar que o mundo aconteça, que as formas aconteçam, que os sons aconteçam… é, de alguma forma “seguir o fluxo”. Mas isso é também muito diferente de uma passividade: não faço o que o mundo espera de mim, mas sou parte ativa do movimento do mundo.

Isso não vale só para a meditação. O sábio, essa imagem curiosa do I Jing, só age assim, isso porque, como diz Laozi, “na não-ação, nada fica sem ser feito”. Mas ao sentar-na-calma, é como se praticássemos a não-ação num momento de serenidade, antes de enfrentar o mundo turbulento da cidade lá fora. Veja que é um movimento incessante de mergulho na imanência: no que está presente, sim, no que me acontece agora. Mas não para dizer, como querem alguns, que isso é tudo. Ao contrário, para dizer que isso não é tudo e não será sempre, e por isso está aqui e agora, e por isso está em movimento. É uma imanência sempre atada a uma transcendência, mas cuja transcendência não se perde, não se separa da imanência, não aponta um além fixado, mas aponta para o próprio movimento do imanente.

Esse lembrar que “isso não é tudo” é lembrar que há sempre mais, ao mesmo tempo que é lembrar que esse há-sempre-mais nunca se totaliza. "Isso não é tudo" aponta ao mesmo tempo para transcendência e para imanência. Então, para o pessoal do gozo pleno: parece que o Oriente encontrou respostas mais mobilizadoras para a castração do que nossas neuroses brancas e colonizadas, não é mesmo?

 Então não, os mais diversos conceitos, nas mais diversas tradições, dhyana, zen, wu wei… nada disso tem a ver com morte e gozo pleno, muito pelo contrário, tem a ver com Paz, que é movimento. Vida, portanto. E mais: o que pode associar psicanálise com meditação não é tanto uma espécie de parceria para cuidar da saúde mental. Por que isso, que até reluto em chamar de meditação, não tem nada a ver com equilíbrio e bem-estar, nem com autocontrole, nem com inteligência emocional - como também a psicanálise não tem a ver com essas coisas. Mas tem a ver, sim, com o que fazemos com o vazio que nos acompanha, que ao mesmo tempo que nos perfura, está em volta de nós, em toda parte - ao mesmo tempo que ele mesmo nos aponta: “isso não é tudo”.


Pedro H. Mendonça

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Subjetivação e ancestralidade: para fazer psicanálise em terras brasileiras

A história de nossa terra é uma história de sofrimentos. Sem dúvida, houve por aqui quem se deu bem no meio disso. É daí que saio, porque quem inventou o racismo foi o macho branco europeu, e quem o perpetua por aqui é um certo tipo que parece ter parado no tempo não ter saído do lugar. A pergunta é: o que faz com que até hoje a branquitude tenha medo da voz dos povos desde sempre silenciados? Comecemos pelo começo: quem inventou o racismo não é o mesmo português que o manteve por aqui. Quem, pra começo de conversa, se deu bem com essa história, voltou para casa - e levou junto nossa madeira, depois nosso açúcar, depois nosso ouro, depois nosso café. Quem instaurou o carrego colonial - como chama um pessoal que faz teoria a partir dos axés - voltou pra Portugal. Quem veio pra ficar, veio porque não era bem quisto lá. E a minha hipótese é que esse é o trauma fundante da violência da branquitude brasileira - nisso, talvez quem venha da história possa me ajudar a falar melhor. Sem panos q...

Curriculum... vitae?

Maria Luiza M. Paiva Como me escrever? E como escrever sem ser de mim? E que é a escrita se não a conversa com outro desconhecido? Não um outro qualquer, nem genérico, nem mesmo suposto… mas, sim, desconhecido. Em cada passo que dei em minha escrita - literária ou acadêmica - descobri cada vez mais que escrever é não saber, não só desse outro que me lê, mas sobretudo de mim mesma. Aprendi cada vez mais a sentar em frente à folha em branco sem ter a mais vaga ideia do que vai aparecer ali. Aqui. Como disse, são coisas que aprendi da minha escrita literária e acadêmica . O problema é que a academia não lida muito bem com isso. Na verdade, a universidade não suporta não saber. E a grande UNIficação do seu saber está nisso: o universitário (no masculino, de propósito) é regido incessantemente pelo seu saber sempre inconcluso, mas sempre prepotente, porque sua inconclusão é insuportável, e é justamente isso que o move. Falar na universidade desde outro lugar é não só um desafio, mas talvez ...

Por que o oriente? A simplicidade do Tao contra os dualismos da tradição ocidental

Tenho estudado o taoísmo. Menos pela filosofia da academia que pelo meu daimon esotérico. Mas o que me encanta nas tradições orientais em geral, e no taoísmo particularmente, é o inesperado parentesco com os pensamentos que me têm orientado no mundo dos saberes europeus. Não há influência direta, em geral. Quando muito, em Jung – mas convenhamos que, para fazer o que tenho tentado fazer do seu pensamento (e que me parece bastante próximo de tais tradições), é necessária uma leitura ridiculamente específica e crítica dos textos junguianos. Heidegger, Deleuze, Lacan... estes dificilmente teriam citado Lao-Tsé. Ainda assim, a filosofia taoísta, tanto quanto os pensamentos que me reinventam, poderia ser descrita inteiramente como uma filosofia da negatividade. No alto da escada das coisas sagradas, o Tao. Por um lado, absoluto; pelo mesmo lado, vazio. Já passei por isso aqui antes, e algum dia pretendo mergulhar de cabeça, mas por ora só repito que, de alguma maneira, o todo e o nad...