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Conhece-te a ti mesmo (e deixa que o outro conheça a si mesmo)


Desde sempre (leia-se, desde os tempos mais antigos que conhecemos em história), o humano tem a ânsia de conhecer o mundo – um mundo que entende como separado e exterior. Sim, acentuo isso porque questiono, mas não, não se trata de nenhuma teoria da conspiração, nenhum tipo de panteísmo individualista, nem, muito menos, de lei da atração. Trata-se, sim, de uma questão que atravessa a filosofia desde seus primórdios: que mundo é este a ser conhecido? Quem é este eu que conhece o mundo? Epistemologia, ontologia e, por que não dizer, metafísica.
Temos a nítida sensação de que somos separados deste externo, mas não foi sempre assim. Os grandes nomes da psicologia, em todas as suas diversas correntes, notam algum ponto da história individual em que se concretiza a diferenciação eu-outro. O que havia antes disso? Não sei, não existia Eu antes disso, portanto, eu não existia, portanto, não me lembro. Ou melhor, não sei, nunca soube, porque o próprio sujeito deste verbo não existia na ocasião. Então por que me importa? Ora, se sou eu que conheço o mundo (outro) e eles nem sempre foram separados, é de suma importância para a nossa discussão.
É fato que as teorias psicológicas estão sujeitas a erro. De qualquer forma, tudo que tenho para dizer sobre minha percepção do mundo externo é esta própria percepção, e entramos numa explicação circular. Toda a prova que tenho de que o que vejo à minha frente é uma mesa com um computador em cima é minha própria percepção da mesa com um computador em cima – e o que me garante que não é uma ilusão? Talvez seja útil saber que outros veem uma mesa com um computador em cima, e resolvido o problema. Mas as próprias palavras deles só chegam a mim através da minha percepção, então continuamos no mesmo impasse, talvez só com uma probabilidade maior de estarmos certos do que antes. Além do mais, quando um falamos sobre um mesmo objeto, tantas vezes não os descrevemos de formas diferentes? Não nos atentamos a pontos diferentes? Ou seja, não o percebemos de formas diferentes? Será, então, o mesmo objeto? Voltaremos a isto mais tarde.
Sobretudo, mesmo com a certeza de estar acordado, em plena sanidade mental, mesmo com a certeza de que todos vemos uma mesa com um computador em cima, mesmo inserido com precisão na realidade compartilhada, esta realidade só é real por ser compartilhada: da mesma forma como minhas experiências me dão a certeza de uma verdade inserida nos paradigmas ocidentais do século XXI, as experiências de um banto do século III a.C. lhe dão a certeza de uma verdade inserida em seu contexto, validada por seus pares. E jamais se poderia dizer que um está mais certo que o outro, porque qualquer um que vá falar sobre o conhecimento que eles têm do mundo está inserido também em seu contexto, com sua verdade validada na realidade compartilhada de seu contexto.
Em resumo, a partir do momento em que olho para o mundo, não se trata mais do mundo, mas da minha percepção do mundo. Nada me prova que o mundo continua lá quando deixo de olhar para ele... aliás, nada me prova que o mundo está lá enquanto estou olhando para ele. Nada me prova que o mundo como o percebo é o real. A rigor, nada me prova que o mundo existe, ao menos este mundo concebido como exterior e fixo.
No percurso da filosofia, resolve-se o debate entre empiristas e racionalistas com uma ideia simples: não é nem o sujeito que, com sua razão, conhece o objeto; nem é o objeto que, em sua exterioridade empírica, se apresenta ao sujeito tábula rasa. Nós, sujeitos do conhecimento temos categorias da consciência, formas de perceber os objetos que nos são dados, inserindo-os numa temporalidade humana, numa lógica causal humana, etc. (falei que voltaria à percepção do mundo). Quem arranja esta solução é Kant, e seria bastante óbvio somar a isso todas as questões pessoais e sociais que nos atravessam ao conhecermos o mundo, sejam medos e preconceitos, sejam metas e objetivos, que interferem em nossa análise nunca precisa do mundo. Mas Kant ainda afirma uma coisa externa, noumeno, existente por si mesma para além do phay-noumeno (brilho do número, o que se mostra da coisa, origem de “fenômeno”). Pergunto-me por que sua preocupação com esta coisa-em-si, que ele mesmo constata como inalcançável (e eu, quase heideggeriano, tendo a constatar como irreal), por que manter a noção de um rigor científico pautado em quanto nos aproximamos do objeto real. Depois dele, virão outros, rompendo com a própria possibilidade existência da coisa-em-si, mas não vêm ao caso aqui.
O que importa é que tudo sobre o que podemos saber é o fenômeno, esta interação gloriosa entre sujeito e objeto. Para além disso, as próprias noções de sujeito e objeto perdem o sentido aqui: pensar o objeto sem sujeito não tem sentido (até porque, no próprio ato de pensa-lo assim, estamos já na ordem do fenômeno), e pensar um sujeito sem objeto, muito menos (existiria a razão pura? Existiria um sujeito sem suas vivências?).
Antes de continuar, coloco neste ponto algumas erratas: para além de sujeito e objeto, as próprias noções de ilusão, de alucinação e de certeza são impensáveis dentro deste contexto – o mundo real e externo que as pauta pode bem não estar lá. Se estiver, pouco me importa, porque não o saberei. Portanto, que se desconsiderem estas palavras todas as vezes que foram utilizadas até aqui.
Frente toda esta constatação, nos vemos face a outro impasse: o que, então, valida uma Ciência? (Escrevo com maiúscula, pois me refiro a toda produção de conhecimento do humano, em contraste com ciência, com minúscula, como paradigma científico atual de produção de conhecimento válido.) Respondo com outra pergunta: para que serve uma Ciência?  A validade de qualquer conhecimento humano diz respeito a sua utilidade no contexto em que surge, além sua inserção na realidade compartilhada (entenda-se que, por exemplo, Brahma, Ganesh e Lakshmi são realidade compartilhada para a comunidade hindu). O conhecimento importa tão somente na medida em que nos é útil (além de acalentar o ego dos acadêmicos) – e entenda-se que não se trata de uma utilidade de tempo e produção capitalistas, mas de uma utilidade para toda a comunidade a que serve, como forma de compreender sua própria condição no mundo e melhor aproveitá-lo em prol da comunidade.
Mais complexo que isso é pensar a própria epistemologia, enquanto pensamento que toma por objeto a forma como sujeito e objeto interagem, chegando à conclusão que é impossível falar do objeto em si (ao menos na concepção aqui tratada). O que podemos falar então sobre como o humano faz Ciência? Podemos falar tão somente dela como produção humana, pensando a verdade enquanto produção inserida em contextos onde ela é a mais válida (ou a mais útil para alguns, em algumas não poucas sociedades permeadas por uma lógica perversa de dominação). Pensar a verdade como produção inserida num discurso – ou, até mesmo, como produção discursiva (mas, por favor, deixemos Foucault para outro dia) – implica pensa-la como determinada por aquele ser que a produz e pelo pensamento que permeia a comunidade em que ela se institui (talvez aqui esteja o porquê de só quase heideggeriano). E tudo o que podemos falar sobre ela é pautado em seus resultados, em sua utilidade, em sua função social; talvez também em termos da coerência interna deste mesmo discurso, desde pressupostos epistemológicos, até teorias e práticas. Mas jamais poderemos falar da verdade em sua realidade externa, jamais poderemos pensar em termos de um “rigor científico” ou “metodológico” referenciado na proximidade ou distância de uma verdade absoluta.

Aqui faço um parênteses para alfinetar o paradigma científico moderno. Nos tempos ditos iluministas, ou nos tempos imediatamente posteriores a estes, quando se separa a ciência da filosofia, construindo a ciência que conhecemos hoje, pautada em princípios que vêm desde aqueles tempos, relega-se a epistemologia e a ontologia, enfim, toda a teoria do conhecimento, ao campo da filosofia. Em seguida, olha-se (pelo menos, muitos o fazem) para a filosofia como disciplina não científica, não pautada nestes mesmos princípios. Assim, fica toda a produção de conhecimento ocidental atual órfã de epistemologia, órfã de bases sólidas para seus pressupostos, mas entendida enquanto detentora última da verdade (e entendendo-a como aproximação máxima da coisa em si).
Um raio poderá ser entendido como um deus bravo que lança sua arma sobre nós (em sua literalidade), como um deus em si (o raio é o deus, não mais controlado pelo deus como uma entidade externa), o raio é uma forma de manifestação de um único deus que se manifesta em tudo, ou o raio é fruto acidental de uma interação entre forças elétricas. Não nos cabe saber qual destas explicações é mais real, por que o real não existe, ou, se existe, é impossível. Não nos cabe saber qual destas explicações é mais válida, porque cada uma delas se insere em contextos que criam critérios de validade diferentes. Cada uma delas é tão real quanto as outras, enquanto experiências humanas.
Enfim, quando se debate ciência e religião/religiosidade (que é quando este debate mais se faz notar atualmente), não se debate razão e fé, mas sim produções de conhecimento absolutamente diferentes, pautadas em paradigmas, pressupostos, experiências e necessidades diferentes. A questão não é se o debate deve ou não deve ocorrer, a questão é que o debate é impossível de ocorrer, a não ser que tenhamos a consciência de que paradigmas, pressupostos, experiências e necessidades diferentes levam à produção de conhecimentos diferentes. É preciso ter a consciência de que a verdade do outro é, para ele, tão verdadeira quanto a minha verdade é para mim; porque, assim como eu fundamento minha verdade em minhas próprias vivências e em meu contexto, o outro também tem os mesmos fundamentos. Isso só se alcança rompendo com uma ideia de verdade como aproximação do mundo externo, real e fixo, para chegarmos a uma verdade em que o mundo simplesmente se dá, de novo e de novo, frente a cada um de nós, uma verdade em que não há retina nem luz, mas tão somente a visão.
Sobretudo, é preciso não tolerar o outro, porque tolerar implica em hierarquização, e aqui não se trata de hierarquia, mas sim de alteridade – significando alteridade o outro, o diferente, o completamente novo, sem hierarquizações, porque o que é completamente diferente não permite comparações. Tantas vezes, vemos discursos de respeito que, se bem observados, estão atravessados de um sentimento de superioridade, em que se respeita o outro não em sua alteridade, mas sim como alguém que ainda não alcançou o seu nível de verdade. Não é disto que se trata. Também não se trata de debater, porque debate, no mais das vezes, implica em convencer. Trata-se de trocar, e tão somente trocar.

Pedro H. Mendonça

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