Espelho, espelho meu, existe alguém mais bela do que eu?
Antes da beleza, importa perguntar: espelho, espelho meu, sequer existo eu?
Acontece que, para desgosto dos biólogos e geneticistas, não. Pelo menos não
assim, não desde sempre, não num corpo biológico dado, não numa herança
genética, não num desígnio divino anterior (e quem me conhece reconhecerá que,
se digo isso, o tema vale outro texto). Com Heidegger, pensaremos que o ser do
ser-aí “está sempre em jogo”, sempre em risco, a todo momento pode não ser
mais; então será sempre uma tarefa, sempre um ter-de-ser. Mas mesmo esta tarefa
está postergada num ideal de eu que orienta um destino a ser traçado. Não,
nossa pergunta está ainda antes.
Buscar no olhar do espelho um ser
que ainda não sou, um ser sempre incompleto, já está implicado no desejo e no
ideal que me orientam em direção a um deus totêmico. Perguntar pela existência
é, antes de perguntar “que(m) sou?”, perguntar “sou?”. Aliás, vale uma errata:
mesmo esta última pergunta não se pode fazer, se trata mesmo de perguntar pela
existência imprevisível do sujeito eu que conjuga nosso verbo – pergunta
impossível, pergunta perdida. Impossível e perdida porque não se registra em
pensamento, não pode se registrar em pensamento antes, precisamente, do eu
pensante que procura.
Qualquer pergunta a ser formulada
depende, portanto, deste momento fundante em que no espelho se forma uma imagem,
mais que uma massa de cores brilhantes. E só pode se tornar imagem a partir do
momento em que se torna reflexo, pois que só assim pode se fechar uma
totalidade gestáltica na moldura do espelho. Para se tornar reflexo, é preciso
que se reconheça ali o próprio olhar (olhar do eu), que só se pode fundar
quando se reconhece ali o olhar do Outro (ainda A). Num olhar
refletido, que funda a alteridade (ou, pelo menos, a externalidade) ao me dizer
“tu és”, e mais ainda “tu és x, y, z” é que se pode, pela primeira vez, ser.
Evidentemente, não demos conta dela,
mas localizamos assim a primeira lição do espelho, na pergunta “sou?” (onde
está conceitualmente o espelho em Lacan). Contudo, ainda resta perguntar,
neurótico que sou, “quem sou?” – e que não se negligencie o papel do espelho
aí! É que agora o espelho já não é mais imagem, senão imagem impregnada numa
rede indefinida e ilimitada de troca, imagem impregnada de sentido. O olhar que
a referencia, ainda que vindo de mim, não é mais um olhar que assegura existência,
mas um olhar que assegura potência – potência só pode ser pensada em referência
a algo. Este olhar, ainda que saia de meus olhos, já se tornou olhar do Outro
(agora sim, Ⱥ). O olhar carregado de diferença, de forma que
pode valorar, dizer que sou mais ou menos válido, mais ou menos valioso. É aqui
que se pode perguntar pela beleza. Depois que um eu forjado em imagem se torna
um Eu forjado em sentido, ele pode sustentar a pergunta pela existência, a
pergunta pelo desejo, a pergunta pela política, enfim as perguntas humanas por
excelência – todas implicadas na diferença e na externalidade, colocando o
humano em relação (lembremos
novamente de Heidegger: “sentido é articulação”).
O espelho da madrasta que pergunta pela beleza, do adolescente que espreme uma espinha, da idosa que pinta os cabelos, todos são espelhos constituintes não de eu, mas de ideal: ideal lançado num futuro, que me faz sustentar a cada vez um ser que não sou (a tarefa de que lembrávamos com Heidegger*). Trata-se de um ideal forjado na diferença em que se funda a cultura, arriscando sempre a hierarquização.
O espelho da madrasta que pergunta pela beleza, do adolescente que espreme uma espinha, da idosa que pinta os cabelos, todos são espelhos constituintes não de eu, mas de ideal: ideal lançado num futuro, que me faz sustentar a cada vez um ser que não sou (a tarefa de que lembrávamos com Heidegger*). Trata-se de um ideal forjado na diferença em que se funda a cultura, arriscando sempre a hierarquização.
No
espelho da chamada “autoestima” (mais alterestima do que tudo) estão
atravessados os significantes do Outro, dos sentidos e significados do mundo,
os discursos produtores de verdades, as escrituras que sustentam pensamentos,
etecetera, etecetera (estou jogando, respectivamente, com Lacan, Heidegger,
Foucault e Derrida). Aqui se pode pensar o que é e de onde vem a beleza da
madrasta, o nojo da espinha, a brancura dos cabelos. Aqui se pode pensar as
relações valorativas e produtoras de sentido. Enfim, aqui se podem ver,
materializadas nas imagens simbólicas deste segundo espelho, as estruturas mais
fundamentais da formação de cultura.
*No entanto, há uma diferença de suma importância: depois de traçar este percurso em torno da constituição do sujeito, notamos que se trata justamente de uma constituição e tudo isso toma parte, portanto, a nível ôntico. A problemática de Heidegger, por sua vez, é eminentemente ontológica. Aliás, talvez seja este o ponto de maior distância entre a fenomenologia hermenêutica e a psicanálise.
Pedro H. Mendonça
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