Creio
que não se faz necessário começar aqui por uma ode ao pensamento mitológico,
devolvendo-lhe seu valor, roubado por nossa avidez pela técnica – especialmente
depois da crítica de Conhece-te a Ti Mesmo, mês passado¹. Reconhecendo seu
valor, podemos pular um capítulo, para pensar mais propriamente do que estamos
falando. O mito certamente não trata de trivialidades, não são historinhas para
entreter. Também não tratam, ao contrário, de um estudo exaustivo e milimétrico
do mundo ou de si. É visceral e emocional, como o entretenimento; mas fala de
algo, como os estudos que nos acostumamos a fazer nos últimos séculos. Neste
sentido, parece óbvia a conclusão mais comum: o mito descreve e explica o
mundo. Mas isto não nos basta, pois caímos aqui em problemas epistemológicos
semelhantes àqueles de que tratei no texto referido: podemos supor um mundo
estável, externo e verdadeiro, anterior ao conhecimento?
É
preciso ir além, é preciso entender os lugares epistemológicos e estruturais do
mito nas sociedades. Quanto ao primeiro, é simples (mas não fácil, obviamente):
basta tomar esta conceituação de que já tratamos e considerar as ressalvas
daquele outro texto, para evitar juízos de valor e nos adequarmos a uma
epistemologia mais rigororsa. Concluiríamos, sendo radicais, que o mito
descreve/explica um mundo (note-se o artigo indefinido),
ao mesmo tempo que o produz. Atropologicamente falando, no entanto, temos de
partir daí: se o mito constrói um mundo (natural e cultural), deve ser ponto fundamental, ao mesmo que contorna o
limite e a borda da cultura. Assim,
temos o mito como ponto-de-estofo da cultura² – em uma palavra, o mito é
estruturante.
Se se nota sempre no mito um caráter apresentador
de mundo, não é por ser ele o modelo explicativo mais correto aos olhos de seus
atores (eles já sabem, não precisam disso). Se o mito parece cumprir a função
de que hoje incumbimos a ciência, é porque ele tem de transmitir um mundo aos
seus sucessores, tem inserir as crianças neste mundo. Por isso é que já fiz
questão de frisar que dentro dele estão natureza e cultura (apesar de todas as
questões que esta divisão suscita): o mito insere os novatos não só num suposto
mundo externo e anterior, a la ciências
naturais, mas também o insere nas histórias e regras que estruturam a dinâmica
social de determinada sociedade. Cabe um exemplo: se em determinada tribo, a
raiz x é proibida, cabe ao mito transmitir esta regra e seu sentido estrutural
na cultura, talvez contando a história do herói que comeu a raiz e quase
morreu, colocando a sobrevivência da tribo em cheque.
Abre-se uma primeira chave interessante para
pensar o mundo moderno e pós-moderno, levando-nos a dois caminhos diferentes.
Se, por um lado, não há mais mito ou religião fundamental da sociedade (há
diversas crenças, algumas dialogando, outras se enfrentando, mas sempre
radicadas na diferença), por outro, somos levados a pensar (ou, pelo menos,
muitos antropólogos e historiadores o fazem) que há substitutos. É aqui que a
trilha se bifurca. Primeiro, partindo do lugar epistemológico do mito, seria
bastante intuitivo que a ciência moderna ocupasse seu lugar de produção de
conhecimento e sustentação de práticas fundamentais da sobrevivência e da
rotina sociais. Em termos simples, antes tínhamos um deus que joga um raio
sobre uma árvore e põe fogo, o qual devo invocar para proteger minha árvore e
incendiar a árvore do inimigo; hoje temos partículas subatômicas que geram uma
descarga elétrica, as quais devo entender para criar um para-raios e dominar
para dar um choque na árvore do inimigo.
Contudo, ainda que a ciência permeie nossas
vidas a todo tempo e sirva como mediadora inúmeras vezes, não me parece que
podemos considera-la estruturante das regras sociais em geral (ainda que seja
tomada como argumento para manutenção de certas normatividades algumas vezes).
Nossas relações sociais não giram em torno de como um elétron se comporta na
ausência de luz. Quando tomamos o segundo caminho, dando mais importância ao
sentido estrutural e estruturante do mito, uma resposta interessante nos é
oferecida pelo best-seller de Harari³: o que o historiador sugere é que não há
diferença fundamental entre um sistema mitológico e um sistema econômico.
Trocamos deuses e lugares divinos por moedas e companhias, entidades tão
etéreas e imateriais quanto os deuses. Assim como uma mitologia, a economia não
sobrevive sem os sujeitos que vivem dentro dela e falam de suas entidades
“fictícias” (é o termo usado por Harari, mas eu seria incapaz de usá-lo sem, ao
menos, aspas).
Vejamos: temos uma força energética etérea que
dá o poder (o capital é o mana);
temos disputas entre “clãs” de diferentes origens (as diferentes moedas são totens);
temos entidades superiores que tomam decisões comunicadas por alguns sujeitos,
mas de origem indecidível (as marcas, empresas e companhias são um panteão de
deuses com vontade própria, que têm de ser agradados); temos representações
gráficas que carregam uma gama interminável de significados (os logotipos são
símbolos). Tudo isso não está aí materialmente, e se todos se calassem sobre o
assunto, sumiria feito uma gota de álcool no sol. Ainda assim, ninguém se cala,
porque tudo isso está aí, e vivemos cada um destes itens na pele, sustentando e
sendo sustentados pela nossa vida mesma, em seus discursos e em suas práticas.
Ainda que as produções científicas sustentem a maior parte do que circula nos
sistemas econômicos, na maioria das vezes, ela nos sustenta indiretamente,
dando principalmente o solo fértil onde podem se produzir os deuses do
capitalismo, estes sim estruturantes da cultura e fundantes das regras que nos
orientam.
A que se deve essa ruptura? Pode ser uma
pergunta interessante, mas que está fadada a ficar sem resposta, pois a
história segue seu curso, e podemos no máximo descrever as contingências em que
suas viradas ocorrem. Talvez a ciência esteja voltada demais ao pensamento para
estruturar a vida sentimental do humano. Talvez a sociedade tenha crescido
demais para se sustentar numa explicação de mundo mitológica singular, de forma
que estivéssemos fadados à pós-modernidade pluralista desde as grandes
navegações. Talvez tenhamos nos tornado ambiciosos demais para acreditar em
deuses anteriores (porque as marcas fomos nós mesmos que, assumidamente,
criamos). Talvez até uma inteligência superior tenha visto de fora da Terra que
era hora de mudarmos – por que não? As perguntas e os modelos de respostas são
incontáveis, mas nenhuma delas cabe. Ao menos, nenhuma cabe como resposta final,
justamente porque as estruturas se complexificam cada vez mais, e estamos
fadados ao pluralismo (e às respostas fundamentalistas a ele). Restam diálogos
e desconstruções, sempre intermináveis, com um mínimo de crítica para saber
quando o poder estruturante do mito se torna poder perverso, dominador e
opressor.
¹Conhece-te a Ti Mesmo (e deixa que o outro
conheça a si mesmo): http://entredois-phmendonca.blogspot.com/2018/06/conhece-te-ti-mesmo-e-deixa-que-o-outro.html
²Cabe aqui pensar o lugar da interdição, não só
na psicanálise, mas principalmente Levi-Strauss: seria o tabu do incesto o
marco de entrada na cultura, a partir do qual nasce qualquer outro mito, ou é
este um mito fundante/estruturante, entre tantos outros, como provavelmente
preferem os junguianos?
³Sapiens:
uma breve história da humanidade. Parece-me estranho que um livro de
antropologia e história se torne um best-seller, mas, lendo-o, chamam a atenção
a simplicidade e a qualidade da escrita, envolvente e leve, ainda que tratando
de temas teóricos complexos e controversos.
Pedro H. Mendonça
ACESSE:
PARTE 2 - A HISTÓRIA DE CRIANÇA E A MONTANHA RUSSA DA VIDA ADULTA
PARTE 2 - A HISTÓRIA DE CRIANÇA E A MONTANHA RUSSA DA VIDA ADULTA
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