ACESSE:
PARTE 1 - CISÕES DO MITO NA PÓS-MODERNIDADE
PARTE 2: A HISTÓRIA DE CRIANÇA E A MONTANHA RUSSA DA VIDA ADULTA
Pensar o rito implica sempre pensar em magia ou religião e, ao mesmo tempo, pensar em corpo – afinal, o gesto ritual se faz com o corpo, um corpo que encarna determinada visão de mundo (voltaremos a ela). No entanto, ainda que também parte constituinte da magia e da religião, Lévi-Strauss argumenta veementemente contra a sujeição do rito ao mito. Refere-se às não raras análises que concebem o rito como simples materialização do mito. Temos de concordar que não é difícil pensar assim: quando vemos um orixá manifestado numa roça de candomblé, vemos literalmente a encarnação de uma figura mitológica. Mas, por mais contraintuitiva que pareça sua posição, Lévi-Strauss tem razões para tal: o rito não é simples encarnação do mito estruturante, é também estrutura, só que em outro nível, demandando esta passagem uma negativação[1]. Isso não nos impede de reconhecer que haverá sempre interfaces, já que, numa mesma cultura, suas estruturas fundamentais têm ser, no mínimo, coerentes.
Um caminho promissor em relação a tal conflito pode ser tomado seguindo as pistas de Clifford Geertz. Este nos aponta que os ritos e os símbolos religiosos reúnem em si determinada visão de mundo e determinado ethos (entendido como atuação no mundo). Por um lado, podemos entender o lugar ocupado pelo rito, segundo esta explicação, como análogo ao lugar que atribuímos ao mito nesta série: articulação estruturante entre um saber (ou, minimamente, um discurso) – um determinado modelo explicativo/descritivo – e a própria identidade cultural, enquanto normas e proibições fundantes do próprio comportamento, enfim, deste ethos. Assim, encontramos um Geertz perfeitamente alinhado a Lévi-Strauss, oferendo ao rito um lugar análogo a, mas separado do mito.
É possível, por outro lado, uma interpretação alternativa – mais radical, eu diria. Podemos entender que, neste ethos, está o próprio gesto ritual, especialmente em sua dimensão de ato[2]. Refiro-me à fisiologia do rito, que somente se evidenciou em antropologia com Mauss, refiro-me às alterações de estados de consciência, às câimbras e movimentos involuntários, aos desmaios... enfim, tudo aquilo que, do rito, atinge o corpo. E o faz sempre passando por uma visão de mundo. Através de gestos simbólicos, porque referenciados no mito, sacerdotes ou feiticeiros atuam (ethos) sobre um corpo. Em última análise, nesta interpretação, unir visão de mundo e atuação no mundo significa fazer enlaçarem-se Simbólico e Real. Ora, não tratamos aqui precisamente da eficácia simbólica lévi-straussiana? Apesar de nos aproximarmos da compreensão corrente do rito como encarnação do mito, não subjugamos um ao outro, não deixamos de entende-los como dimensões separadas, mas também não caímos no perigo de afastá-los completamente. Interpretar Geertz desta forma permite oferecer uma possibilidade de articulação entre duas dimensões estruturais diferentes.
Resta-nos, então, perguntar: se o rito, tanto quanto o mito, funda e fundamenta a cultura, e se a série que se encerra neste texto se propõe a encontrar o mito esfacelado na contemporaneidade, onde está semelhante o encontro de ethos com visão de mundo, de mito dito com rito? Há uns poucos elementos que surgem à primeira vista: a etiqueta certamente cumpre seu papel, a rotina talvez, o trabalho na sua relação com a economia, a internet na sua relação com o saber... mas fica uma sensação de que falta algo a esta resposta. Para encontra-lo, teremos de lembrar que Lévi-Strauss não aceita respostas positivadas a questões estruturais: seu fundamento está sempre na negativa, e sempre em oposições fundamentais[3].
Outro nome, também mais recente – aliás, ainda vivo – da antropologia nos faz pensar nas contradições do rito, de forma que tenhamos ideia de onde procura-lo: Marc Augé. Certamente pecarei pela pressa, mas podemos encontrar tais contradições brevemente em uma palavra: re-começo. Com hífen, pois ainda que re-, é sempre um novo começo. No rito, articulam-se sempre em dialética a tradição e o novo, o coletivo e o individual. O rito busca um momento anterior, um rito original, ao mesmo tempo que o renova sempre e a cada vez. Se, a nível coletivo, o rito repete uma tradição, mas de forma sempre nova e reestruturada em cada (inter)subjetividade; também, no nível individual, cada rito posterior se remete de volta a uma iniciação ou rito de passagem, também repetindo-os de forma nova e reestruturada a cada vez.
A tensão entre indivíduo e sociedade, entre subjetividade e cultura, é velha conhecida das ciências sociais em geral. Assim, talvez tenhamos alguma razão em buscar na trivialidade do cotidiano os rastros do rito: é aqui que buscamos todos os dias o Outro para nos assegurar a existência e, mais do isso (hoje em dia com sorte, eu diria), a existência enquanto sujeitos. Mas há um nível mais amplo em sua expressão atual: a contraposição subjetividade-cultura está sobretudo manifesta através de normas (normatividades, diríamos) e tabus – os discursos, restos mortais do mito, que articulam nossas possibilidades de ser e se comportar em sociedade. Assim, mesmo que ainda no cotidiano, os restos mortais do rito estão espalhados principalmente em pontos mais graves: nas práticas (ethos) de dominação e normatização. É nelas que se articulam, em relação dialética Simbólico e Real, o discurso e seus efeitos mais viscerais. Compreendendo-as como rito, e compreendendo o rito com Marc Augé, nos vemos cara a cara, talvez, com um dos únicos pontos de encontro de um estruturalismo radical (diríamos pós-estruturalismo[4]) com um possível marxismo – mesmo que, dito isso, o caminho de reação a tais práticas seja, no mínimo, divergente, de acordo com o pensamento que nos oriente.
[1] Em Lévi-Strauss, qualquer mudança de nível estrutural, seja do mundo vivido para estruturas fundamentais, seja entre estruturas diferentes, demanda negativações: inversões (ao menos, subversões, diríamos hoje).
[2] Esclarecendo os termos, costumo restringir ato para o sentido psicanalítico da atuação, do atossintoma, da passagem ao ato. Ao tratar do uso simbólico do corpo, prefiro buscar outros termos, como gesto, neste caso.
[3] Não me estendo aqui sobre isso, pois o texto da próxima quinzena (encerra-se hoje esta série) trata justamente do lugar da oposição tão evidente em Lévi-Strauss e tão disfarçada em Lacan.
[4] Lévi-Strauss, em sua inauguração de uma Antropologia Estrutural, ainda tece diálogos com Marx. É na radicalização do estruturalismo (portanto, nos teóricos pós-estruturalistas) que se torna epistemologicamente impensável um acordo entre os dois pensamentos.
Pedro H. Mendonça
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