Para falar do que é mais originário,
esbarraremos nos autores mais diversos, ou teremos pelo menos rotas para tal,
se quisermos. Os paralelos serão inevitáveis, e às vezes surpreendentes, mas
acontece que todos estão buscando aquilo que é anterior à experiência – um
pecado epistemológico, certamente. Por isso mesmo, o saber que se pode tecer
sobre o que é mais anterior é sempre na negativa, por se tratar sempre daquilo
que foge à positivação da vida vivida¹. Em Heidegger, a indeterminação
originária, a nadidade anterior ao decaimento num mundo de sentidos históricos;
em Saussure, o signo como entidade vazia e arbitrária, que só ganha sentido na
articulação da língua; em Jakobson, o fonema zero, sem som, que só serve à
articulação dos outros fonemas; em Lacan, o objeto a, encontrado unicamente em
seus restos escondidos no desejo; em Lévi-Strauss, as estruturas elementares,
sempre leis esvaziadas que servem somente à organização da cultura como ela é
vivida; até mesmo em Jung (surpresa!), o arquétipo é forma vazia e só se torna
imagem ao se fazer símbolo (embora, nas análises práticas, ele peque
repetidamente contra sua própria distinção, positivando conteúdos o
inconsciente coletivo)².
Interessa-me aqui a ideia de
oposição não simplesmente por um apreço por Jung ou uma defesa do
estruturalismo (voltaremos ao lugar da oposição em Lévi-Strauss). No seu Esboço de uma teoria geral da magia,
Mauss se refere a três leis fundamentais do pensamento mágico: similaridade (o
semelhante substitui ou age sobre o semelhante), contiguidade (a essência da
coisa está em cada uma de suas partes, que podem, portanto, substituí-la) e
contrariedade (que funciona pelo mesmo princípio da similaridade, mas tratando
dos opostos). O que me interessa aqui é a linguística (logo, a dinâmica
inconsciente) da coisa. Enxergamos facilmente a metáfora e a metonímia nos dois
primeiros. É verdade que uma análise mais detida do pensamento de Mauss nos
mostrará que, estruturalmente, os dois mecanismos estão presentes nas três
leis, mas simplifiquemos as coisas por enquanto.
O que me interessa então é perguntar
a (na verdade, com) Lacan: o que raios aconteceu com a contrariedade? A nível
estrutural, é fácil compreender que ela está inserida nos processos
metafóricos, já que o que rege a substituição significante são as qualidades,
iguais ou opostas, da coisa. No entanto, ainda que não tenha bebido diretamente
de Mauss, Lacan certamente bebeu de Lévi-Strauss, que dá um lugar todo especial
às oposições, anterior à própria positivação da cultura, um lugar originário.
Não se trata mais de um mecanismo do pensamento, mas do próprio fundamento do
Simbólico.
Sigamos passo a passo. Em
antropologia, o estruturalismo, à primeira vista, pode se confundir com o
funcionalismo, mas a rixa é grande – e tem razão de ser! A proposta, de fato, é
semelhante: traduzir a cultura nas dinâmicas mais simples entre determinados
elementos que cumprem determinadas funções. Mas o buraco é mais embaixo. A
escola funcionalista o faz da maneira mais simples, transformando agentes da
cultura em figuras abstratas cuja função dinâmica é o que interessa, e Lévi-Strauss
não pode contentar-se com uma mudança de plano estrutural simplificada e
positivada como esta. Quando subimos a um nível mais fundamental, dirá
Lévi-Strauss, opera-se sempre uma inversão, o que significa, em última análise,
que é preciso negativar o que está posto no mundo vivido.
A necessidade de inversão não é à
toa, pois o Simbólico só pode ser fundado a partir do negativo. Aqui teremos de
nos deter por mais tempo, pois é aqui que está o assunto fundamental deste
texto. Quando lidamos diretamente com a cultura, lidamos com imagens
positivadas e já carregadas de sentido. No entanto, como estruturalista,
Lévi-Strauss não pode atribuir o sentido à coisa por si mesma. É de Saussure
que bebe: o signo por si mesmo é arbitrário, portanto esvaziado de sentido; a
significação só se produz quando o signo se insere na língua, quando se
confronta com outro signo. Às últimas consequências, isso significa que o
sentido só se produz na diferença, na alteridade – enfim, na oposição –
portanto, a origem, o anterior à
cultura, é sempre sem-sentido.
Isto implica, segundo o antropólogo,
numa contradição inerente ao Simbólico. Como representação do mundo, a cultura
tem a pretensão de dar conta dele. O saber que produzimos ambiciona explicar
ou, pelo menos, representar o todo (pós-modernos que somos, adicionaríamos: ao
mesmo tempo que o produz). No entanto, esbarra sempre no sem-sentido, com este
originário deslumbrante impossível de ser alcançado (de novo, adicionaríamos:
que só nasce junto com a própria pretensão de sentido, mas voltaremos a isso
com Lacan). Em parte, é aí que está a oposição fundamental de Lévi-Strauss: a
contradição impossível de ser superada, mas que as produções culturais vêm
tapar; a oposição entre o Simbólico e o sem-sentido, oposição ela mesma no
plano do sem-sentido impossível.
Assim,
o lugar da oposição em Lévi-Strauss é um lugar fundante: a oposição é
estrutural, no sentido da estrutura esvaziada, da estrutura como lei que
sustenta o confronto com a diferença, confronto este que é a própria origem do
sentido.
Entendidos com Lévi-Strauss,
retornemos: o Simbólico só pode ser fundado a partir do negativo. É verdade que
isto está expresso também em Lacan (já num prelúdio pós-estruturalista), quando
pensamos que o significante produz um corte: o Simbólico só se pode fundar
quando é fundado junto com ele o Real. Se formos radicais, descobriremos que
não há Real antes, pois o sem-sentido,
aquilo que escapa ao Simbólico, só pode ser pensado quando contraposto ao sentido. Como disse que voltaríamos: Lévi-Strauss
já adianta que o Simbólico não dá conta do Real, mas lhe escapa ser uma via de
mão dupla, em que o Real não é sequencialmente anterior, senão logicamente. Em
outras palavras, o Real só nasce quando o significante produz seu corte e, se
dizemos que é anterior, é somente no sentido de ser ele mais originário. Talvez
tenhamos encontrado um prenúncio de onde procurar a oposição em Lacan, não mais
uma oposição irreconciliável, mas uma oposição sustentada nesta via de mão
dupla em que Real e Simbólico se fundamentam mutuamente.
Por outro lado, se a oposição em
Lévi-Strauss está na contraposição,
no confrontamento da diferença entre
signos que, por si mesmos, seriam vazios, então seria intuitivo pensar que, em
Lacan, a oposição está entre eu e Outro, na medida em que a imagem especular do
eu se funda somente com o olhar do Outro. Acontece que teoria lacaniana é
traiçoeira: diferente da maioria dos citei no primeiro parágrafo, há aqui dois
momentos de decaimento³. Na fundação de eu especular, de fato, a oposição
fundamental está na externalidade, no nascimento de um eu contraposto a objetos
que lhe sejam externos. Aqui, eu e Outro equivalem aos signos saussurianos, que
só ganham sentido quando postos em conjunto (e por isso mesmo, só podem nascer
ao mesmo tempo). Quando da inserção na cultura, porém, o que está em jogo é a
dinâmica sentido/sem-sentido. Neste segundo momento, o oposição fundamental
está posta no próprio corte, que funda seus dois polos (o Simbólico e seu furo).
Independentemente de onde busquemos
a oposição, interessa aqui notar uma guinada imprescindível ao século XX: tanto
em Jung, quanto em Lévi-Strauss, as oposições são anteriores, algo dado a priori, a que os símbolos culturais
vêm responder; com Lacan, em seus prelúdios pós-estruturalistas, encontramos
somente oposições cujos polos se sustentam e se fundam mutuamente, não a priori, mas na própria cultura. Não me
interessa especialmente que a oposição seja antes ou depois da cultura, o que
importa é percebermos que os dois polos de qualquer oposição asseguram a
existência do outro polo. Isso porque a palavra mais adequada a este fenômeno
não é exatamente oposição, mas contraposição: no Real, no sem-sentido,
não há contradição, justamente porque não há ambição de sentido. A polarização
se funda não em caracteres da coisa em si4, como a ideia de oposição dá a entender; ela se funda no
próprio gesto simbólico de contrapor,
gesto que funda os dois polos, porque funda a própria contradição.
¹
Que fique claro àqueles que vêm de fora: não se trata de valorações. Positivo
aqui tem unicamente o sentido de aquilo que se faz presente; negativo é aquilo
que não é, que não está, o ausente. Uma distinção quase matemática.
²
Talvez seja útil aqui uma reflexão ontológica para nos responder por que o ser
positivado tem que desesperadamente vir do não-ser, mas o tema pede outro
texto.
³
Refiro-me, primeiro, ao estádio do espelho, depois, ao descentramento edípico.
Para maiores esclarecimentos, recomendo texto de 09/07/2018, As duas lições do espelho (http://entredois-phmendonca.blogspot.com/2018/07/as-duas-licoes-do-espelho-da-identidade.html).
4
Com isso, não posso deixar de me envolver em questionamentos relativos à
psicologia de Jung. Nosso tema esbarra na psicologia analítica em dois pontos.
Primeiro, tocamos a centralidade das polaridades na teoria junguiana, em que
são sempre tratadas positivamente, como pares de opostos em si mesmos (de forma
mais evidente e assumida que a confusão em que se envolve muitas vezes entre
arquétipo e imagem arquetípica, positivando aquilo que seria ontológico). Resta
perguntarmo-nos: há espaço na teoria junguiana para pensar a oposição em seu
viés negativo ou, pelo menos, como procedimento metodológico, em lugar de
qualidade da coisa-em-si? Outro ponto, talvez menos evidente, em que esbarramos
em Jung é a centralidade do sem-sentido nas análises estruturalistas, que
remete à ideia de experiência imediata,
experiência do arquétipo sem a mediação de instituições culturais (imagens
religiosas, dogmas, etc.). No entanto, Jung não leva esta ideia à radicalidade,
pois trata dela justamente como uma experiência: se nos restringirmos à
experiência realmente livre do Simbólico, encontraremos tão somente o
impossível do Real. Os dois temas, no entanto, merecem atenção maior do que uma
nota, ou mesmo um parágrafo, dentro deste texto tão breve.
Pedro H. Mendonça
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