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Utopia do desejo: um projeto político e subjetivo


Movimentar honestamente o próprio desejo e as próprias contradições.


            Para começo de conversa, me parece necessário esclarecer o contexto em que surge este texto ou, mais precisamente, esta frase (que o texto só vem expandir). Tratava-se de uma discussão sobre modos de fazer esquerda e, mais precisamente, o lugar da utopia (talvez, até, seja válido escrever mais sobre isto em algum momento). Duas grandes perguntas: a utopia – seja para chegar lá, seja para simplesmente dar a direção – deve nos orientar (dever = dentro de determinada ontologia, ser coerente pensá-la e, ao mesmo tempo, ser ou não ser ela necessária)? Se não, seria possível fazer política – especialmente, política progressista, mudar o mundo – sem ela?
            Não vou discutir estas questões, afinal, o tema aqui é outro. Importa que, em alguns aspectos, nós que, discutimos, discordamos quanto à resposta da primeira – e com argumentos, é claro, que não deixam de se articular com a segunda. Concordamos, porém, que é impossível fazer esquerda sem utopia. É válido, de fato, pensar uma esquerda que aposta na emergência espontânea do novo, fundamentando-o na crítica, entendia como apontamento das contradições e impossibilidades (seja ela na educação, na leitura, na produção de discursos...) – enfim, uma perspectiva não utópica, não revolucionária (afinal, tudo que se pode fazer assim é reforma) e não marxista, um trajeto em que podem nos ajudar Heidegger, Arendt ou Deleuze. Mas, ao propor esta esquerda, esbarramos, nós mesmos, numa contradição: se valorizamos o novo e a mudança, é que acreditamos que eles podem correr para um lugar melhor (e melhor é sempre uma perspectiva de ideal). Não, podemos valorizá-los por eles mesmos, diríamos. De fato, mas isso implica somente que nosso ideal é um mundo onde o novo emerja repetidamente.
            É neste contexto que me dou conta de que, de fato, há utopia por trás de minha proposta. Acontece que a utopia que me referencia segue caminhos mais conciliáveis (nunca completamente) com este projeto político não marxista e “não utópico” (mas agora sabemos que isso é mentira). Formulei assim: movimentar honestamente o próprio desejo e as próprias contradições. Isto nos traz consequências políticas e consequências subjetivas: estas últimas ficarão evidentes conforme formos destrinchando as ideias. Elas são, em última instância, o caminho que deveria ser tomado por toda análise individual¹. À política, voltamos em breve.
     Na verdade, há apenas dois grandes polos de significação nesta frase: honestidade e desejo/contradições (que andam sempre juntos). Movimentar é simplesmente o único verbo que cabe ao desejo sem torná-lo mental e sem se confundir com a mera realização do que demanda. Na verdade, movimento é precisamente o termo que melhor descreve isto que estou chamando de desejo. Longe de mim querer me meter nas intrigas Lacan-Deleuze, mas em qualquer psicologia há algo que se refere a um ponto originário que nos impulsiona à vida: uma negatividade originária, um desejo (furo), u­m desejo (movimento), um Self. Sem nos metermos nas picuinhas acadêmicas, o que todas estas ideias têm em comum é serem irreproduzíveis, irrepresentáveis, invivíveis... enfim, impossíveis. E justamente por serem impossíveis é que nos impulsionam à vida; (re)encontrar este lugar é o que nos põe em movimento a cada vez; todas estas ideias têm algo a ver com nirvana.
            Mas o desejo – e é aqui que me agrada tratá-lo como furo – é marcado sempre pelas próprias contradições, pois seu próprio status de origem se choca com a sua atualização em cada nova demanda: como qualquer pretensão de origem, o desejo só se funda na alteridade, na produção discursiva. Em termos lacanianos, a contradição aqui ocupa o lugar do choque entre Real e Simbólico. O desejo, apesar de ser o cerne da subjetivação, é sempre fundado no Outro, o que implica cultura – que, por sua vez, implica contradição. E é preciso reconhecer que neste ponto Marx será muito bem-vindo; junto dele, os chamados pós-estruturalistas. Portanto, a contradição implicada no desejo se fundamenta em dois lados (que, certamente, se sobrepõem): a dialética entre ser e não-ser, entre sentido e sem-sentido, entre vivido e impossível, enfim, a dialética que caracteriza o próprio movimento de viver; mas também as contradições da cultura, tanto econômicas e de dominação (Marx), quando de produção de sistemas culturais (estruturalismo).²
            Agora, o que a honestidade tem a ver com isto tudo? Desejo e contradição tratam de uma ontologia e de uma epistemologia – ainda não se trata de um projeto. Para que se tornem algo a fazer, desejo e contradição têm de se transformar em verbos; só podemos pensar num projeto quando falamos em movimentá-los. Movimentá-los implica que eles se atualizem no mundo, que se façam vida – e isto já é um grande passo. Estamos diante da oposição freudiana entre pulsão de vida e pulsão de morte: ambas estão fundadas numa totalidade originária (e o todo é sempre também o nada). O problema é que, se tento retornar a ela, me estabilizando numa interioridade vazia e completa, ou seja, se me deixo dominar pela pulsão de morte, mergulho em direção ao não-ser e deixo de fazer vida, deixo de transformar desejo em movimento – não há mais projeto. Movimentar só possível quando o nada se expressa num buscar incessantemente algo, quando se expressa em pulsão de vida.
            Movimentar, portanto, implica sempre a contradição da impossibilidade. É aí que precisamos da honestidade. Opto por este nome porque o que quero expressar não é simplesmente realizar vontades, nem viver passivamente esta ontologia. Para movimentar com saúde é necessário que se o faça com franqueza, com verdade, em contato honesto com esta ontologia. Isto tem a ver com propriedade em Heidegger, com individuação em Jung, com o sujeito do desejo em Lacan. No fim, o que interessa, é estar consciente, em contato com o desejo e com as contradições. Isto se traduz, na prática, em potência humana, em cada termo de valor político: empoderamento, sujeito de direitos, autonomia. Tudo isto só se torna possível quando estou em contato com meu próprio vazio e, portanto, minha própria ambição impossível de totalidade. Mas quero deixar claro também que não se trata de um aprender teórico – e isto é importante demais! Primeiro, porque saber não produz verdade, mais precisamente, saber não implica viver de acordo com este saber. Segundo, e talvez até mais importante, porque a poucos chega a produção de conhecimento, e um projeto político não pode ser para poucos. Aliás, está é uma pendência da psicologia frente a sociedade: podemos e devemos nos livrar dos ideais de cura de onde viemos enquanto ciência (psicoterapia), e produzir este movimento honesto em análise (quando digo que é um projeto subjetivo, isto implica que é para lá que toda análise deve caminhar, é claro). Mas a prática clínica e a análise individual também são para poucos, e as práticas da psicologia na coletividade, em sua maioria, ainda têm mais a ver com alívio de sofrimento do que com subjetivação, individuação, propriedade, etc.: no fim, elas têm substituído a psicoterapia, mas não a análise.
            Começamos a caminhar em direção à política, ao implicar desejo e coletividade. Na verdade, a própria ontologia de que tratamos põe em jogo sempre o Outro, justamente porque ser sujeito desejante é desejar o Outro e com o Outro. Assim, tomar o próprio desejo como princípio político não é referenciar o social no egoico (muito menos satisfazer vontades, mas a esta altura espero que esteja claro); é, antes de tudo implicar na política as relações de subjetivação, porque desejo é relação. Os próprios conflitos – psíquicos e sociais – são as contradições da cultura e do desejo encarnadas na vida pessoal e no movimento coletivo. Aliás, por isso mesmo é que tomei desejo e contradição como um único eixo de significação no nosso projeto: ambos, sempre juntos, fundamentam as relações, e as relações é que fundamentam a política e a subjetividade.
            Mas há implicações mais profundas, e ainda na intersecção. Acontece que isso que chamei de honestidade tem de ser, antes, do sujeito consigo mesmo (é reconhecer honestamente tudo que está atravessado no movimentar desejo e contradição), mas também tem de ser honestidade com os outros. Por um lado, ter este ideal como utopia significa que ele é para todos, isto é, tomar para si este movimento é cuidar do movimento de cada um com que cruzamos – aliás, o próprio choque entre dois de nós faz parte das contradições que nos originam. Por outro lado, não se trata tanto de uma autovigilância moral do super-homem individuado, se não que de lidar francamente com os próprios movimentos é pô-los em jogo em cada relação, reconhecendo o movimento alheio: é poder dizer não sem que isto se torne pessoal, é poder sugerir sem ofender... é saber encarar a diferença e, acima de tudo, valorizá-la.
            Por fim, retornamos ao início: como disse, no meio de nossa discussão pessoal, me dei conta de que eu só podia de defender a aposta emergência do novo como (não)projeto político porque minha utopia era esta (o que, evidentemente, rendeu muito mais discussão). De fato, o desejo nos implica na imensidão de possibilidades. Com Heidegger, podemos lembrar que é quando se angustia (quando se encontra com a própria negatividade originária) que o Dasein pode singularizar (outro termo para propriedade) – e é aquele que singulariza que pode captar e positivar o que está posto como possibilidade histórica. Com Deleuze, lembramos que é no “objeto = X”, ou seja, nos seus pontos de intersecção e, portanto, de instabilidade e contradição, que a estrutura se modifica. Por isso é que me parece que a única ética que pode sustentar a transformação como pura emergência do novo é justamente uma ética referente aos campos de totalidade/esvaziamento, de instabilidade, justamente a partir dos quais pode surgir o novo. Ou seja, movimentar honestamente o próprio desejo e as próprias contradições – para todos!

¹ Apesar das pretensões da psicanálise, cabe em qualquer abordagem psicológica uma distinção radical entre a psicoterapia (com seus ideais médicos de cura) e a análise (que caminha para o desejo, para a individuação, para a propriedade... enfim). Por mais contraintuitivo que possa parecer a alguns, mesmo a análise do comportamento (que opta repetidamente pela primeira) pode sustentar perfeitamente algo mais próximo de uma análise do que de uma psicoterapia.
² Resgate-se o último texto (Oposição e estrutura: fundamentos originários?) para um pensamento mais extenso sobre o lugar da contradição no plano ontológico e na formação de cultura.

Pedro H. Mendonça

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