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Diferença e democracia: como responder ao Brasil 2018?


            Para começo de conversa, não quero que este texto se resuma a um mero ele não ou ele sim. Sei que os poucos a quem minhas palavras chegam estão longe de serem desinformados, então não me interessa listar motivos contra ou a favor de um candidato (há, de fato, desinformados, mas dificilmente estarão lendo isto). Estive em dúvida por algum tempo: não há muito mais o que dizer àqueles a quem alcanço, mas também não posso fechar os olhos e escrever quaisquer palavras sobre qualquer tema acadêmico que nada tem a ver com tudo que está acontecendo... de repente, me dei conta que o que tenho realmente para contribuir, e que ninguém pode fazer por mim, é justamente o encontro destas opções. Escrevo, então, sobre as ideias que me rodeiam – na subjetividade e no laço social – neste momento, pautadas naquilo que estudos aparentemente tão distantes do “patrão nosso de cada dia” podem oferecer para uma visão singular do mundo vivido – tal como vivido hoje.
            Curiosamente, mesmo antes dos tempos eleitorais, tem me circundado a noção de diferença. Há muito o que dizer aqui, e talvez me falte aprofundamento deleuziano para pensar tudo que quero pensar, mas num momento como este é preciso arriscar. O fundamental aqui é que a identidade só vem depois, bem depois, da diferença. De fato, quando falamos de “saber lidar com a diferença”, ainda não é da pura diferença que estamos falando. Tendemos a pensar a diferença em termos de identidade: maçãs são diferentes de bananas, porque maçãs são maçãs e bananas são bananas. O problema é que, antes de ser maçã, aquela maçã singular é pura diferença em relação a tudo que não é ela – inclusive outras maçãs. Com Sartre, diríamos que “o ser é definido pelo não-ser”.
            De modo algum isto anularia o valor de “saber lidar com a diferença”, muito pelo contrário, ressalta que este é (ou deveria ser) um gesto muito além da tolerância, deveria um gesto que reconhece que ninguém está com a razão, porque não há razão possível, e que suporta a angústia da contradição para que daí possa brotar o movimento da vida. Nesta pura diferença, me parece que há algo do Real lacaniano: aquilo que, escapando à lógica da consciência, só pode se reconhecer como um sem-sentido anterior àquele ponto que as coisas passam a ter um ser (identidade e sentido) para chamar de seu. Só pode ser também o lugar donde nasce o desejo, movimento de transformação de si e do mundo (um pleonasmo, pois se não há transformação, há estagnação, jamais movimento).
            É nesta radicalização do valor da diferença que me vejo num impasse grave. Acontece que, em política (e aqui estou na linha tênue entre política propriamente dita e esta coisa partidária que se convencionou chamar de política), é preciso suportar a diferença acima de tudo, por dois motivos. O primeiro e mais óbvio deles é a gestão de conflitos: é claro que, se não queremos sair no tapa, temos de ouvir o que o outro nos tem a dizer, por mais absurdo que nos pareça. Mas muito além disso e muito mais importante é que essa diferença simplista (que é aquela pautada na identidade) abre caminho para a tensão. No conflito de superfície é possível fazer emergir as tensões e contradições que nos sacodem em direção à pura diferença – e relembro que a partir dela é que movimentamos e produzimos vida.
            Apresenta-se para mim a solução óbvia em toda discordância política: respeito à alteridade para que a diferença possa nos movimentar. O grande porém que o Brasil hoje nos traz é que, neste caso, a alteridade que se apresenta para nós na política mata a diferença. Aterroriza-me então a questão: como valorizar a diferença quando a alteridade é aquela que pretende acabar com toda diferença? Ou melhor, o que realmente mantém meu compromisso ético-político com a diferença: rechaçar a ameaça a ela ou entender a ameaça como, ela mesma, diferença? Em última análise, defender a democracia é defender o resultado das eleições, mesmo que ele ameace a possibilidade futura de eleições? Na dúvida, prefiro não arriscar. Na dúvida, vou de #elenão.

PS: não escrevo este texto aos eleitores, até porque ele não tem qualquer poder de convencimento. Escrevo quase como um desabafo, resultado dos contornos que pude dar à angústia, dos caminhos teóricos que encontrei para dar sentido ao sem-chão que me assola. Espero que possa servir pelo menos nesta direção a alguém outro. Sem resultado prático direto, procuro simplesmente consolidar um chão de onde atuar, para caminhe alinhado com uma Weltanschauung e um sinthome que sejam meus.

Pedro H. Mendonça

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