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Libélulas, pavões e cores existenciais



            O divino, seja como totalidade, seja como esvaziamento e nadidade, está sempre posto no lugar daquilo que nos escapa. Com Lacan, chamaríamos de Real, naquilo que “não cessa de não se inscrever”. Com Jung, poderíamos pensar em sua experiência imediata, mas teríamos de criticá-lo pela ilusão de que ela seja possível no seu rigor – ora, ele mesmo nos indica que o arquétipo está além de qualquer experiência possível, para noutro lugar nos falar de uma suposta experiência imediata? Bem, para começo de conversa, se é uma experiência, está na cultura, no mundo simbólico que constitui a própria possibilidade de vivência humana. Radicalizando este conceito junguiano, encontramos, portanto, a própria dimensão impossível da totalidade/nadidade, aquilo que a todo momento nos escapa e nos submete ao furo do Simbólico. Não deixo de passar por Jung, apesar das tensões internas, pela utilidade de apropriações mitológicas e poéticas que produzam abertura.
          Importa notar que, assim como nas ideias de Real e de experiência imediata, qualquer teologia minimamente coerente tem de passar pela impossibilidade de apreensão do divino. Penso que não se trata de pura manipulação religiosa, mas da própria expressão mítica das afetações, das contradições, do sem-sentido... enfim, daquele lugar onde o Real nos atravessa a todo momento, sem se deixar agarrar. E, na medida em que qualquer possibilidade de ser está orientada pelos sentidos do mundo, trata-se da experiência do não-ser. Ou melhor, trata-se da não-experiência do não-ser. É por este caminho que tendo a pensar este lugar também como nadidade e totalidade (que andam sempre de mãos juntas).
            Depois de um prelúdio um tanto prolixo, chegamos enfim ao nosso tema. Tendo-o como impossível, o que interessa não é propriamente o divino, mas aquilo que o cerca. O xamanismo norte-americano nos oferece uma expressão realmente significativa¹ e até mesmo bela para o divino: Grande Mistério. E, rondando o Grande Mistério, ocupando o posto de sua guardiã, a Libélula. O mito de sua origem conta sobre um dragão dotado de poder de transformar-se, cujas escamas já reluziam como reluzem as asas da Libélula. O tal dragão, manipulado pelo coiote, teria assumido a forma do inseto, movido pela vaidade. Num julgamento moral, sobre o qual não me detenho aqui, se atribui a fixação desta forma ao afeto que o move. De toda maneira, interessa muito que as cores reluzentes se mantém – e não são menosprezadas!
O lugar oferecido à Libélula não é mero reflexo do mito, mas é principalmente referido à luminosidade reluzente, signo do encantamento, da multiplicidade, do esplendor do Grande Mistério. A guardiã, aquela que autoriza ou – principalmente – barra a entrada, é aquela que contorna os limites do que podemos acessar do que escapa a toda inscrição e a todo sentido. Mas reluz suas luzes! Do vazio, a Libélula faz brilhar uma multiplicidade grandiosa, algo que nos chama para um mundo que pode, esse sim, ser experienciado. São as cores do mundo que, em encantamento ou em angústia, se abrem enquanto florescimento de ser e, por que não?, florescimento do novo: é a partir da abertura de cores (que pode, sejamos honestos, ser aterrorizante) que se produz qualquer projeto de eu e de mundo. Aliás, a própria origem da Libélula num dragão em constante mutação nos remete à transformação: é rondando o Grande Mistério, que a diferença pode se produzir (mais rigorosamente, que pode se fazer ver... mais ainda, que podemos abandonar os ideais de identidade para fazê-la emergir).
Num outro lugar, completamente distante do xamanismo norte americano, também nos deparamos com as cores explodindo num movimento existencial: na alquimia, perdida (pelo menos, em partes) na história europeia, ouvimos falar da cauda pavonis – literalmente, a cauda do pavão. O que interessa é o colorido de suas penas. Trata-se de um estágio – ou melhor, um ponto intermediário entre dois estágios – do processo alquímico. São três os estágios propriamente ditos: começamos em nigredo, onde o preto põe em jogo o vazio (de novo ele!); seguimos por albedo, onde se produz um brilho claro de abertura para o mundo e para o saber; terminamos em rubedo, onde o vermelho da carne remete à materialização das possibilidades abertas.
Embora haja discordâncias, a maior parte dos alquimistas localiza a cauda pavonis entre nigredo e albedo, como momento em que o vazio escuro explode em luzes coloridas, oferecendo o leque infinito – e, por isso mesmo, tão angustiante e encantador quando as asas da libélula – um leque infinito de possibilidades que se mostram ao espírito em albedo e se atualizam na matéria em rubedo. Apesar de tão apressada síntese, quero lembrar especialmente que os processos alquímicos se referem, mais do que a qualquer outra coisa, a um pretenso caminho de lapidação² pessoal. À primeira vista, me pareceria impossível separar semelhante conceito de ideais morais. Remetendo-nos, no entanto, a às profundezas saturninas e lunares por onde envereda a alquimia, é possível encontrar outras possibilidades.
O próprio nigredo, onde se inicia o grande trabalho, não passa tão longe das concepções esvaziadas/totais do divino: apesar do seu caráter restritivo saturnino, está ontologicamente bem próximo na nadidade heideggeriana, o Grande Mistério xamânico, da totalidade junguiana, do Real lacaniano. Todos têm, é claro, sua especificidade, mas todos carregam também este impossível, este algo que foge de toda apreensão. Além do mais, mesmo com Saturno, nigredo explode em cauda pavonis, assim como o Grande Mistério é rondado pela Libélula: algo deste todo-vazio se mostra numa explosão que, enquanto nos deixa estupefatos, nos convoca a um caminho: movimento honesto, singularização, individuação... enfim, o caminho de si – e de um si que só pode emergir do nada! E por isto mesmo é que precisamos de cores, uma explosão delas, para nos abrir a existência com aquilo que podemos apreender dela e, antes de tudo, aquilo que dela podemos tomar enquanto potência de ser.

¹ Lembro que, em certos momentos da história, se compreendeu o símbolo como aquele significante que nos abre uma gama de incontáveis possibilidades de significação.
² Curioso é que este sentido figurado de lapidação vem do processo realizado com pedras e cristais, e não posso deixar de lembrar também de lápis philosophorum, a pedra filosofal alquímica. Ao mesmo tempo, lapidação também já se referiu (embora não se use mais) ao apedrejamento de pecadores.

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