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Não-escrita (por enquanto!)


          Ontem, nosso país sangrou. Ontem, tivemos um funeral. Mas é preciso acreditar na ressurreição da carne: da carne de terra vermelha, a virgindade de matas verdes, o sangue de águas azuis. É preciso levantar e ser resistência. Respeitemos o resultado das eleições, democratas que somos, mas lembremos também que, quando a vida e a democracia estão na linha de tiro, não somos oposição, somos resistência.

Se chorarmos, será de esperança.
Se cantarmos, será a palavra de ordem da resistência.
Se calarmos, será para buscar no silêncio a potência do novo.
Se tivermos medo, será para nos advertir do perigo e relembrar o motivo da luta.
Se gritarmos, será em nome da diferença.
Se lutarmos, será com livros e flores.
Se amarmos, será a cada um na sua singularidade.
Se nos perdermos, será para encontrar novos caminhos.
Se dormirmos, será para acordar revigorados.

            A lista continua. A luta continua. Não posso escrever, não posso pensar. Mas também não posso deixar de escrever. Não é tempo, de fato, para reflexões acadêmicas abstratas – elas são necessárias, elas movem as modulações do desejo que impulsionam a luta, mas agora é tempo de juntar o desejo que já temos (e eu sei bem meu che vuoi?), porque é tempo de fazer dele movimento. Hoje, especialmente hoje, não posso escrever. Hoje, especialmente hoje, não posso pensar. Mas hoje, especialmente hoje, deixo de especular sobre o desejo, para movimentar honestamente o próprio desejo e as próprias contradições¹ – comigo, e com meu Outro. Movimento é a palavra vez!


Pedro H. Mendonça

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