Bom, eu queria começar lembrando a
música da jornada de dois anos atrás. Aos que não estavam, uma música circulou
muito, chamada A terceira margem do rio,
de Milton e Caetano². E eu sei que muitos de nós aqui no grupo da jornada já
nos lembramos desta música, num verso em que diz: “casa da palavra, onde o
silêncio mora”. Mas eu queria lembrar de um outro verso, que diz: “fora da
palavra, onde o mais dentro aflora”, porque o silêncio que eu quero pensar aqui
é um silêncio que está fora de toda palavra, um silêncio que não mora na casa da
palavra, talvez.
Acho
que para isso, é preciso começar fazendo uma contraposição entre o silêncio do cálice³, que é um silêncio em que há um
Outro, seja efetivamente concreto à minha frente, seja um Outro sobjetivo, que
me diz: “não diga isso”, mas sempre tem algo aí a ser dito. E é preciso dizê-lo,
especialmente nos últimos tempos. Mas isso é uma fala silenciada, e o silêncio
que quero trazer não é da interdição, mas sim da própria impossibilidade de
dizer, porque é este “mais dentro”, que está “fora da palavra”. É o silêncio
que nos invade no sem reação, e o silêncio do sem-sentido, o silêncio de “ficar
sem palavras”, e por isso o título.
Eu
acho interessante que, ao longo do século XX, diversos pensadores e diversas
correntes vão tratando sobre este “mais dentro”, este silêncio que é mais
originário, sempre na negativa, sempre dizendo “não é isto, não é aquilo”, e eu
queria começar com Heidegger. Não vou falar sobre Heidegger completamente,
porque ele é enorme e complexo, mas é interessante que um termo que circula
sempre na fenomenologia heideggeriana é “negatividade originária”, e é exatamente
isso que quero tratar: esta origem, da qual só falamos negativamente.
Como
eu disso, é enorme, mas tudo gira em torno de uma palavra, que é a palavra existência. E existência não como a realidade
efetiva de algo, como a gente diz no senso comum, quando esta mesa está aqui, à
minha frente, então ela existe, mas existência no seu sentido mais etimológico,
mais original, que diz ek-sistere,
ser-para-fora. E é este ser-para-fora que vai dar origem aos termos heideggerianos
por excelência (ser-no-mundo, ser-aí), que se referem a... nós. E está sempre
escrito junto: em alemão, existe a possibilidade de escrever uma palavra só com
várias palavras, no português, a gente escreve com hífen. Mas a ideia é que
está sempre junto, este ser-no-mundo, ser-aí, porque o ser do ser-aí só se dá
no mundo – diferente desta mesa, que é mesa a
priori e por ela mesma, ela tem um ser que lhe é dado (“mesa”), e aí
podemos até discutir sobre como pensar este ser sem uma perspectiva
cientificista, e aí são outros 500... mas essa mesa é mesa por ela mesma, acho
que nisso podemos concordar. Eu não. Eu, ser-aí, não sou nada a priori. Em outras palavras, a gente
fala sobre “indeterminação originária”, “o ser-aí não tem essência prévia”,
enfim... diferentes terminologias para dizer isso: não sou a priori, não tenho determinação anterior, portanto preciso deste
mundo, só posso ser neste mundo que me determina a posteriori.
Neste
“mundo”, o que tem de interessante aqui – e que é o gancho que vou querer pegar
– está referenciado no adjetivo que caracteriza a fenomenologia heideggeriana,
que é Fenomenologia hermenêutica. E
hermenêutica não tem a ver aqui com a hermenêutica grega, nem com Sto.
Agostinho, etc. Hermenêutica foi muitas coisas, mas esta tem a ver com uma tradição
específica, que é a de Schleiermacher e Dilthey, que vão entendendo que, para
eu compreender um texto, é preciso interpretá-lo a partir de um campo de
sentidos que é o dele, e que é histórico. Portanto, esta marca do sentido histórico é o que marca a
hermenêutica ao lado de fenomenologia. E estou falando sobre isso porque o “mundo”
em Heidegger é isto, é “horizonte histórico de sentidos e significâncias”.
E
é pensando o mundo enquanto mundo de sentidos que eu queria pensar um pouquinho
também o estruturalismo. São duas correntes muito diferentes em muitos pontos e
muito aproximadas em outros, mas as duas têm esta marca da negatividade em alguma
medida, e eu acho que o estruturalismo está pensando uma coisa que é muito
interessante quando a gente pensa em Heidegger e o mundo como mundo de
sentidos. Porque, se Heidegger (pelo menos lá na primeira parte de sua vida,
quando escreve Ser e tempo) está
pensando o ser deste ser que só é no mundo, o estruturalismo está pensando este
mundo: como se produz sentido? Como brota sentido?
Vou
falar um pouquinho de Lévi-Strauss, que inaugura a Antropologia estrutural, mas
primeiro acho que é preciso distinguir algo que é uma confusão corrente. A
gente pensa em estrutura,
normalmente, no senso comum, como coisas que estão articuladas entre si, que
ocupam determinadas funções e com isso formam um sistema dinâmico, ordenado... “sistema”
– acho que é uma palavra que normalmente a gente consegue colocar nos lugares em
que a gente costuma colocar “estrutura”. E Lévi-Strauss vai pensando que, sim,
a primeira coisa que olhamos quando olhamos para a cultura são seus sistemas,
mas a gente não os entende no nível mais fundamental se a gente se limita a
este nível mais positivo, mais vivido, na medida em que não é isso que está fundamentando
a autopoiese, a fabricação, desta cultura. Ele dirá que precisamos fazer
inversões quando queremos chegar a um nível mais estrutural, e cada vez que
mudamos de nível em nosso entendimento, precisamos fazer inversões. E eu vou
lendo estas inversões como algo próximo desta ideia de negatividade – até em
Saussure.
A
própria noção de estrutura vem de Saussure, de sua Linguística estrutural, e eu
vou falar um pouquinho sobre esta lógica, porque é o que Lévi-Strauss
transporta para pensar a cultura. Desde muito tempo, já pensamos que o signo é
arbitrário, mas a discussão sobre a arbitrariedade do signo – ou seja, a
palavra “mesa”, por exemplo, nada tem a ver com o conceito de “mesa”, então
esta união entre significante e significado é arbitrária – esta discussão por
muito tempo ficou num nível muito superficial, e até com Saussure e
Lévi-Strauss, eles não levaram isso às últimas consequências, mas Saussure se
dá conta de que isso faz com que o signo não seja por ele mesmo. As palavras
que ele usa são “entidade negativa”, o signo é “vazio” por ele mesmo, ele é um
sem-sentido. Então a linguagem se fundamenta em signos que são vazios,
entidades negativas, e Saussure vai pensar, então, que o sentido só se produz,
a relação de significação só se produz quando este signo está colocado no paradigma
linguístico, quando ele está confrontado com outros signos. Acho que, para os lacanianos,
dá para pensar já num prenúncio da primazia do significante, dá pra ver que é
isto que vai virar depois a primazia do significante. Bom, a diferença é que
Saussure ainda está preso à convenção, então, a partir do momento em que este
signo está na convenção, palavra e conceito se unem. Mas são estas oposições –
contraposições talvez seja uma palavra melhor – que vão fabricando sentido, e
são contraposições governadas por leis estruturais: no caso da Linguística, a gramática
(num sentido bem amplo, não necessariamente a gramática dos livros, mas a gramática
que orienta minha língua enquanto eu construo um discurso); na Antropologia, a
própria lei da cultura, seus sistemas (sistema totêmico, sistema de troca, de
parentesco...).
O
que eu acho interessante disto tudo é que você tem entidades vazias, que são os
signos, negativos, sem-sentido, formando relações que são bastante aleatórias
entre si e fundadas em entidades sem-sentido, portanto relações também vazias,
também são negativas, sob leis, que, sendo leis, são negativas, a lei só se positiva
quando ela atua sobre algo concreto. E, de tudo isso, de alguma forma, brota
sentido – e esse é o fascínio de Lévi-Strauss, ele passa a vida pensando como
deste monte de sem-sentido, brota uma cultura como (Heidegger me bateria, mas
tendo a fazer esta aproximação) mundo de sentidos. E Lévi-Strauss vai pensando
o tempo inteiro nisso: para falar sobre a cultura, eu preciso falar deste nível
que é mais fundamental, anterior à produção de sentido, onde se articula o
mundo e, daí, brota algum sentido.
Só
que aí tem uma gap, que Lévi-Strauss não pega. Como eu disse, ele e Saussure
não levaram às últimas consequências a arbitrariedade do signo, e é aí que
surgem estes que a gente chama de pós-estruturalistas. Eles são muitos, são diversos,
é bastante complicado chama-los de pós-estruturalismo, como uma coisa só. Mas o
que autoriza – duvidosamente – esta classificação é que todos estão
direcionando esta mesma crítica a Lévi-Strauss. Ele não leva a arbitrariedade
do signo às últimas consequências, na medida em que ele está pensando num
sem-sentido, depois disso algo acontece (a simbolização), e disso brota sentido.
Uma coisa quase cronológica. O problema nisso é que, quando a gente fala “sem-sentido”, a gente
está falando da perspectiva do sentido. Aliás, quando a gente fala, é sempre da
perspectiva do sentido. Também dá pra pensar isso lá com os termos heideggerianos
que eu estava usando antes: quando a gente vive, fala, qualquer coisa que
façamos, estamos sempre sendo, e não dá para falar do não-ser sendo. E é o que
estes caras todos, esta geração da França dos anos 70-80, vai pensando, por
diferentes caminhos. Este sem-sentido só brota junto com o sentido, e tudo o
que eu afirmo sobre este sem-sentido, ao mesmo tempo que sustenta o meu
discurso, porque eu o assumo como verdade, esta mesma coisa é sustentada pelo
meu discurso sobre este sem-sentido. Seria, em termos lacanianos, dizer que o Real
só se funda junto com o Simbólico, antes disso, ele pode estar aí, mas ele é
outra coisa. O Real como nós o entendemos – e junto com isso, o não-ser, o sem-sentido
– só vem depois. Tudo isso, vejam que a gente fala sempre na negativa, e é por
isso que coloquei como subtítulo “negativas sobre o sentido”. Porque,
referenciados na perspectiva do sentido, a gente só pode tratar disso negativamente:
quando eu estou lá, eu não falo; quando eu falo, eu não estou lá.
Era
mais ou menos isso, e vou só fazer uma conclusão. Eu falei várias coisas bem
teóricas, e acho que a gente precisa pensar um pouco sobre isso. Por diferentes
caminhos, precisamos pensar sobre este silêncio, que é o silêncio que escapa à
palavra, na medida em que nós temos posto, desde o começo das
últimas eleições, o endurecimento mais bruto do ser e do sentido. Um desespero
por dizer “eu sou macho”, “eu sou hétero”, “eu sou braço”, obviamente algo
bastante defensivo, que não tolera o não-ser, não tolera o sem-sentido, a
indeterminação. Então, eu diria que temos que falar sobre o cálice, porque isto (que não é nem a
cristalização, é a concretude mais bruta) nos diz cale-se, e não podemos nos
calar. Junto com isso, acho que é um ato de resistência falar sobre este silêncio
do fora da palavra, tão insuportado.
Mas, sobretudo, eu acho que não basta fazer resistência para fazer esquerda. O
que define a esquerda, em sentido bem amplo, é querer mudança. E, enquanto eu
penso mudança a partir do que já está posto no mundo positivado, no mundo
vivido, eu não estou falando de mudança real. Eu posso mudar detalhes, mudar a
forma como as coisas aparecem, mas não há o verdadeiramente novo enquanto eu
não posso fazer brotar um novo ser do não-ser, um novo sentido do sem-sentido.
Por isso que acho que precisamos olhar para este silêncio do fora da palavra. Poder silenciar, não
para pensar, mas para não pensar o que está acontecendo, e daí poder emergir
qualquer mudança possível.
¹ Transcrição de comunicação oral apresentada na 9ª
Jornada Internacional Psicanálise e Sociedade: o silêncio, 10 de novembro
de 2018
³
Referência à música de Chico Buarque e Milton Nascimento, mas também referência
à apresentação de Arnaldo Dominguez de Oliveira (Este cálice: entre os países da homeostase e os do gozo, um oximoro barroco),
disponível em: https://arnaldodominguez.wordpress.com/2018/11/09/este-calice/
Pedro H. Mendonça
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