Pular para o conteúdo principal

Esse in anima: entre o daimon e a verdade do ser


            O capítulo três da segunda parte de Ficções que curam, Hillman o intitula assim: O ataque de Jaspers à demonologia. Poderia ser espantoso, portanto, a aproximação que aqui nomeio, entre daimon e verdade do ser; ao menos se compartilhamos a clássica aproximação entre Heidegger e Jaspers, se entendemos o pensamento existencialista e humanista como decorrência da fenomenologia hermenêutica de Heidegger. Mas não podemos esquecer o esforço heideggeriano de separar-se da tradição existencial-humanista, na longa crítica que tece em Cartas sobre o humanismo. Em suma, o grave erro que aponta em Sartre e Jaspers é tratar existentia como humanitas do homo humanus. Ex-sistência (ser-para-fora) perde seu caráter ao transformar-se em existentia, palavra única, que se pode entender como coisa, como ente. Mais que isso, como coisa que é defendida como determinação própria do humano (humanitas).
            Curioso que as críticas de Jaspers enumeradas por Hillman, de uma perspectiva junguiana – e demonológica – têm de ser todas respondidas afirmativamente: sim, você entendeu bem o que pensamos, e é preciso pensar assim! O ver através (das críticas de Jaspers) hillmaniano, aqui, se torna de fato reafirmar os apontamentos de Jaspers, apresentando-os não como falhas, mas como a própria força da demonologia e do pensamento junguiano.
            Acontece que, assim como o humanismo existencial, segundo Heidegger, transporta existência para uma lógica dual de fenômeno-noumenon, espírito-corpo, ideia-coisa, também ao tratar de daimones, Jaspers parece não parece poder entrar a fundo na lógica da alma, anima – justamente porque a dualidade espírito-corpo relega a alma, a imagem, o inconsciente a uma simples invasão instintiva e orgânica (voltarei ao abandono cristão da alma mais adiante)¹. Mas não, não é disso que se trata. Ao contrário, daimones também não são deuses, habitantes do mundo transcendente do espírito, são figuras imanentes, expressas na imanência do mundo vivido. Não nos chamam, portanto, ao espírito racional analítico, mas à experiência sintética da alma. A alma, a anima, não estão acima como o espírito idealizado pelo cristianismo nos últimos séculos. Também não estão abaixo, como a matéria, o corpo e o inconsciente (quando se o entende como mera força instintual reprimida). Nenhum dos dois, esse in anima é terceira opção – e, no fundo, a única dos três realmente experienciável.
            A experiência da anima, campo dos daimones, é que modula a experiência do mundo. Melhor dizendo, é ela que produz mundos diferentes: mundos mercuriais, mundos marciais, mundos saturninos, mundos apolíneos, mundos dionisíacos... Cada um deles afinado por um deus que não existe – digo, não existe para além de seus daimones, pois que, nas palavras de Hillman: “encontramos os Deuses pelos daimones que os circundam”. Daimon, portanto, é a experiência possível, num malabarismo teórico que nos livra do objetivismo (matéria-corpo-instinto) e do subjetivismo do (espírito-Deus-logos).
            O que, segundo Heidegger, impede o humanismo existencial de levar a cabo o projeto invocado pela ex-sistência – a saber, o pensar da verdade do ser – é que a transporta para uma filosofia impregnada com a Metafísica, ainda que crítica a ela. Não há por que me reportar a cada uma das críticas de Jaspers a Jung (afinal, Hillman já o fez), mas interessa que todas elas são verdades, e nós as enxergamos como potências junguianas por apontarem para a anima, rompendo com o dualismo cristão corpo-espírito. O que Hillman nos mostra em cada um destes itens de Jaspers, é que entende-los como defeitos do pensamento junguiano é reminiscência deste dualismo, o mesmo da tradição Metafísica que perverte a verdade do ser.
            É verdade que a rejeição ao humanismo não significa que o projeto ontológico hillmaniano e heideggeriano se encontrem. Na verdade, parecem realmente divergir em pontos cruciais, mas há trechos a caminhar de mãos dadas. É preciso lembrar que, em Hillman, a psique está no mundo, e a alma é anima mundi. A anima, assim como a verdade do ser, perdeu-se na tradição, nos distanciamos dela. Hillman mostra como a Igreja Católica, mesmo muito antes da Reforma, caminha em direção a uma suspensão das imagens, renegando a experiência sintética da alma e localizando o divino unicamente no pensamento analítico e solar do espírito.
            Quando Jung sugere um terceiro campo da experiência humana – esse in anima – e quando Hillman recupera a imagem nestes moldes, que entendo como abertura sintética de sentido, ambos parecem estar recuperando, assim como Heidegger, a physis grega, o mundo entendido enquanto autopoiese. A Metafísica da tradição – que Hillman concentra no abandono da alma – descreve um mundo dual, levando a ciência ao ideal de precisão, modus operandi do espírito. Perde-se a contemplação anímica. Assim, a physis grega (que pergunta pelo como e pelo porquê do aparecimento dos entes) transforma-se em física moderna (que se pergunta pelo o quê objetivo da coisa).
            O esse in anima em Jung e Hillman e a verdade do ser em Heidegger, recuperam este terceiro modo experiência, nem acima como o espírito, nem abaixo como o corpo. São, em sua radicalidade, o único espaço possível da existência, compromissados com o numinoso do mundo, com o maravilhoso, com o incomensurável. Na história da tradição, nos distanciamos da alma, da verdadeira pergunta pelo ser. Ainda assim, continuam sendo a experiência mais próxima de nós: a experiência da significação, da produção de sentido, sustentada pelo próprio não senso originário. Como tal, curada do objetivismo do corpo e do subjetivismo do espírito, a alma nos aponta à pluralidade, ao politeísmo, nos aponta, enfim, ao daimon. Ou melhor, aos daimones, em sua infinitude de mundos possíveis.

¹ Sobre a distinção alma-espírito, Hillman a explora detidamente em Re-vendo a psicologia e no ensaio Anima.

Pedro H. Mendonça

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Subjetivação e ancestralidade: para fazer psicanálise em terras brasileiras

A história de nossa terra é uma história de sofrimentos. Sem dúvida, houve por aqui quem se deu bem no meio disso. É daí que saio, porque quem inventou o racismo foi o macho branco europeu, e quem o perpetua por aqui é um certo tipo que parece ter parado no tempo não ter saído do lugar. A pergunta é: o que faz com que até hoje a branquitude tenha medo da voz dos povos desde sempre silenciados? Comecemos pelo começo: quem inventou o racismo não é o mesmo português que o manteve por aqui. Quem, pra começo de conversa, se deu bem com essa história, voltou para casa - e levou junto nossa madeira, depois nosso açúcar, depois nosso ouro, depois nosso café. Quem instaurou o carrego colonial - como chama um pessoal que faz teoria a partir dos axés - voltou pra Portugal. Quem veio pra ficar, veio porque não era bem quisto lá. E a minha hipótese é que esse é o trauma fundante da violência da branquitude brasileira - nisso, talvez quem venha da história possa me ajudar a falar melhor. Sem panos q...

Curriculum... vitae?

Maria Luiza M. Paiva Como me escrever? E como escrever sem ser de mim? E que é a escrita se não a conversa com outro desconhecido? Não um outro qualquer, nem genérico, nem mesmo suposto… mas, sim, desconhecido. Em cada passo que dei em minha escrita - literária ou acadêmica - descobri cada vez mais que escrever é não saber, não só desse outro que me lê, mas sobretudo de mim mesma. Aprendi cada vez mais a sentar em frente à folha em branco sem ter a mais vaga ideia do que vai aparecer ali. Aqui. Como disse, são coisas que aprendi da minha escrita literária e acadêmica . O problema é que a academia não lida muito bem com isso. Na verdade, a universidade não suporta não saber. E a grande UNIficação do seu saber está nisso: o universitário (no masculino, de propósito) é regido incessantemente pelo seu saber sempre inconcluso, mas sempre prepotente, porque sua inconclusão é insuportável, e é justamente isso que o move. Falar na universidade desde outro lugar é não só um desafio, mas talvez ...

Por que o oriente? A simplicidade do Tao contra os dualismos da tradição ocidental

Tenho estudado o taoísmo. Menos pela filosofia da academia que pelo meu daimon esotérico. Mas o que me encanta nas tradições orientais em geral, e no taoísmo particularmente, é o inesperado parentesco com os pensamentos que me têm orientado no mundo dos saberes europeus. Não há influência direta, em geral. Quando muito, em Jung – mas convenhamos que, para fazer o que tenho tentado fazer do seu pensamento (e que me parece bastante próximo de tais tradições), é necessária uma leitura ridiculamente específica e crítica dos textos junguianos. Heidegger, Deleuze, Lacan... estes dificilmente teriam citado Lao-Tsé. Ainda assim, a filosofia taoísta, tanto quanto os pensamentos que me reinventam, poderia ser descrita inteiramente como uma filosofia da negatividade. No alto da escada das coisas sagradas, o Tao. Por um lado, absoluto; pelo mesmo lado, vazio. Já passei por isso aqui antes, e algum dia pretendo mergulhar de cabeça, mas por ora só repito que, de alguma maneira, o todo e o nad...