Em
tempos de hegemonia monoteísta, é preciso resgatar o politeísmo do próprio
Cristo – politeísmo psíquico, ao menos. Hillman nos ensina os perigos do
monoteísmo egoico e centralizador, do monoteísmo de um deus que encarna o
perverso totalitário [1]. Se há algo que Jung e os junguianos podem trazer de
valioso é a multiplicidade do teatro psíquico, este drama 1100 personagens onde
nenhum – jamais! – é igual ao outro. A
psique plural de Andrew Samuels se faz radicalmente na multiplicidade,
logo, na diferença. Isto é politeísmo: o culto à diferença [2].
O
Natal que temos pela frente encerra um ano de uso perverso da religião, um ano
marcado pela política que, em nome (questionável) de Deus, centraliza e mata.
Para fechar com chave de ouro, um grande médium de cura se revela um abusador.
Dúvida cruel: onde, no discurso do amor cristão, cabe a morte, o abuso, a
opressão? O problema é mais embaixo. O deus monoteísta não é uma ideia
existencial que gira em torno das perguntas fundamentais. Não, o deus
monoteísta, o velho de branco sentado na nuvem, cuja ira pode acabar com todos
nós, este está distante das perguntas fundamentais e, portanto, da religião.
Sim, porque religião, enquanto religare [3],
retorna a uma essência sagrada perdida. Talvez esteja ousando aqui, subvertendo
a religião, mas perguntemos: essência sagrada perdida?
O
sagrado gira entorno do mistério, da pergunta. Em tudo aquilo que há de divino,
há uma pergunta, não uma resposta. Deus, incognoscível, fala da própria
incomensurabilidade do mundo, do sentido escasso e inesgotável da vida, do
paradoxo que fundamenta toda experiência humana. Paradoxo-choque entre ser e
não-ser. A experiência do mistério está naquilo que Heidegger trataria por
“fundamento nulo da existência”, e qualquer tentativa de estudo do sagrado é
falaciosa: “não usarás o santo nome em vão”. Não porque seja proibido enquanto
interdição, mas porque a pergunta fundamental não se tece em palavras (a não
ser, talvez, na palavra poética). Quando deixamos de perguntar pelo sagrado e
nos ligamos à experiência do mistério, “essência sagrada” torna-se paradoxo, se
formos bastante heideggerianos. Como falar numa essência sagrada, se o sagrado
denuncia justamente a ausência de essência, ou melhor, uma perguntar no lugar
de essência? É neste sentido, e somente neste sentido – ontológico, nunca
cronológico – que se trata de uma essência perdida. Perdida não porque um dia
houve e se perdeu, mas justamente porque nunca há: a cada vez que me aproximo
dela, ela surge de novo velada. Se “essência sagrada” é paradoxo, “sagrada e
perdida”, portanto, é pleonasmo.
Religião,
se estamos bem entendidos, torna-se um compromisso com o não-senso. Não como
uma querela antirreligiosa tola que entenda a religião como delírio coletivo,
mas, pelo contrário, como um reconhecimento da potência deste compromisso, da
potência de perguntar pela nadidade, de onde explodem-se as possibilidades
polimorfas da cauda pavonis [4]. A
religião, tal como a entendemos aqui, dá um salto do perverso totalitário, rei
monoteísta e literal, para o poeta ex-sistente, compromissado com seu vazio. De
fato, não estamos distantes do Totem e
tabu, na medida em que a Lei e o mito deixam seu estatuto total e
centralizado e passam a operar como totem, cuja manutenção só se pode fazer
sobre um lugar vazio (caso queiram, um pai assassinado – opto por uma linguagem
menos positiva e literal).
A
referência freudiana aqui tem a vantagem de nos levar a um outro nível do
assunto: trata-se de um dos chamados “textos sociais de Freud”. A casa vazia,
sobre a qual o divino pode se operar como pergunta existencial, é a mesma
entorno da qual toda estrutura deixa de ser estrutura
= ordem e se torna potência de movimento. Também é a mesma entorno da qual
a cultura, enquanto coletividade, se faz. É que estrutura não é minha estrutura. A estrutura é autônoma,
porque se faz no movimento humano enquanto movimento social. Assim, a pergunta
fundamental que sustenta a experiência do sagrado é a mesma pergunta de onde
emerge a incomensurabilidade das possibilidades humanas. Cauda pavonis: da escuridão, a explosão de luzes coloridas – não
mais dentro, mas fora. No laço social, na alteridade radical, na pura diferença:
a multiplicidade e a indeterminação manifestas nos outros (plural!).
É
que é preciso lembrar que o teatro psíquico junguiano, só numa leitura muito
parca e mal fundamentada está “dentro”: “a psique não está no homem, mas o
homem é que está na psique (não na sua
psique)”. O politeísmo hillmaniano está, ao mesmo tempo, nas minhas próprias
diferenças enquanto potência e contradição, mas está, principalmente, no mundo,
no culto à diferença e à alteridade radicais. Aliás, as perguntas fundamentais
só podem ser feitas na coletividade, e o homem como ex-sistente só o é porque
há um mundo que lhe chama a ser. Caso contrário, estaríamos com Luiz Tatit:
“assim era no princípio, metáfora pura suspensa no ar”. Se o mistério não
pudesse, pela implicação no laço social, ser enunciado enquanto pergunta,
estaríamos suspensos em nossa própria negatividade, nunca lançados ao ser.
A
profundidade da psicologia profunda, assim, se torna um efeito de superfície: a
negatividade e a incomensurabilidade da linguagem só se dão na sua própria
enunciação, o politeísmo só pode acontecer numa psique-mundo, e o psíquico só
pode se forjar na coletividade. A questão do divino, neste caminho, só se torna
perversa quando cai no erro de responder sobre Deus – opção que temos visto
mais do que desejaríamos. Quando Deus se faz pergunta, no entanto, afirma-se o
compromisso com a própria negatividade e – o que anda sempre junto com a
interioridade – o compromisso com a coletividade, na diferença radical e seu
politeísmo, expressão máxima da potência humana.
Aqui
podemos retomar o que chamei de politeísmo do Cristo: “amarás ao teu próximo
como a ti mesmo”. Talvez não se trate de um mero preceito moral para o
bem-viver comum. O amor cristão (que iguala o si-mesmo à coletividade,
lembremos) anuncia o compromisso com a coletividade. Assim, a religião como
princípio ético anda de mãos dadas com a ética do desejo. Religare, mais do que regra, é compromisso, a três níveis: com o
meu próprio mistério, com o mistério de meu próximo, e com a fundação coletiva
– e plural – da negatividade enquanto mistério. “... e a Deus sobre todas as
coisas” – se temos Deus como pergunta, jamais como resposta – implica ter o
não-senso, a negatividade e o sagrado (enquanto mistério) sustentando o amor mundi, sustentando o compromisso
com a pura diferença e com o politeísmo.
[1]
Perversão ou subversão? (Do totalitarismo à resistência) – https://entredois-phmendonca.blogspot.com/2018/12/perversao-ou-subversao-do-totalitarismo.html
[2]
É evidente que não se trata aqui de uma hierarquia entre religiões, mas, em
última análise de modos de ser: produzir sentido de maneira monoteísta ou
politeísta – talvez coubesse melhor polidaimoníaca.
[3]
É verdade que, ao contrário do que se pensa comumente, remeter religião a religare é questionável, e causa discordâncias dentro do próprio campo
da etimologia. É seguro remetê-la a religio
(reverência aos deuses), o problema é saber se este substantivo refere-se a religare (como de praxe, religar) ou a relegere (reler). Como não estamos numa pesquisa
etimológica e como o imaginário popular modula a experiência religiosa mais do
que a ciência etimológica, chamo a atenção para o dilema, mas me autorizo a
utilizar como religare como operador,
mero mobilizador do pensamento, independentemente das verdades linguísticas.
[4]
Libélulas, pavões e cores existenciais – https://entredois-phmendonca.blogspot.com/2018/10/libelulas-pavoes-e-cores-existenciais.html
Pedro H. Mendonça
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