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Perversão ou subversão? (Do totalitarismo à resistência)


Há lei que não seja totalitária? Talvez seja conveniente perguntar antes: há lei que não seja perversa? Certamente, nem toda dominação é perversão. Aliás, nem só de perversão se faz o totalitarismo. Para que o haja, não basta um sujeito perverso, que se crê encarnado da Lei¹, é preciso que o acompanhem milhares ou milhões de sujeitos literalizados/literalizadores que ainda acreditem na imaginarização da Lei – a própria neurose... será? O panóptico foucaultiano², por exemplo, não depende do sujeito perverso, e sua eficácia está justamente em que o neurótico que se crê observado basta à sua própria vigilância. É um equipamento que se opera na sua própria neurótica (obsessiva?), mantendo toda sua estrutura = ordem em torno que uma centralização ausente da Lei: falo, mana, fonema zero, casa vazia.
Monto este significante, estrutura = ordem, justamente porque a minha aposta aqui é que estrutura não implica necessariamente em ordem, no sentido da dominação. O panóptico pode não implicar em perversão, mas certamente ainda é dominação, ainda se limita à estrutura = ordem. Talvez devamos reformular nossa pergunta: há lei que não seja dominação? Deleuze provavelmente nos diria que tudo aquilo que limita o desejo é, por isso mesmo, instrumento de dominação. Mas há desejo sem Lei? Se pensado fora da linguagem – da gramática-lei, portanto – o desejo não pode se enunciar enquanto potência eminentemente humana. O ex-sistente só se constitui enquanto tal no momento em que pode enunciar a própria morte, a própria negatividade. O desejo tem de ser ausência presente, porque a pulsão de vida do ex-sistente só movimenta para fora (desejo) quando se pode enunciar... numa linguagem essencialmente poética, diria Heidegger.
Há desejo sem Lei? Certamente há prazer, certamente há pulsão de vida, certamente há gozo. Mas tudo isso só vira desejo – eminentemente humano e ex-sistente – no momento em que o incomensurável da Lei e da linguagem se vê obrigado a metaforizar um vazio originário (nadidade). Mesmo sem Lacan, já conhecemos o caráter perdido da origem com Derrida, ou o caráter negativo da ex-sistência com Heidegger. O sem-Lei, o gozo total, portanto, nunca houve. Há tão somente suas versões perversas e fajutas. Se ser-no-mundo é estar, desde o início, lançado ao Simbólico (e não me parece absurdo afirmá-lo, já que mundo é mundo de sentidos), então o próprio nascimento já depara-se com a Lei – ainda que não se absorva nela. O sonhado e inautêntico gozo total só pode ser, portanto, gozo totalitário. Assim como o autoritarismo é o último suspiro de uma autoridade moribunda e desesperada, também o totalitarismo é o último suspiro de uma totalidade moribunda e desesperada. Se a origem é sempre origem perdida, se o gozo total nunca o foi, se o próprio movimento do decaimento depara-se com a Lei, então é preciso encarnar eu mesmo a Lei, para que o gozo possa ser total(itário): eis o perverso.
Note-se que não se trata de deter o falo. O falo que se pode deter é o significante fálico, significante flutuante à mercê da operação do simbólico. Agrada-me abandonar a carga história que o termo carrega e tratá-lo, como Deleuze, por casa vazia, objeto = x. Mas aqui não se trata de deter e, definitivamente, não se trata de casa vazia. Ao contrário, trata-se de preencher desesperadamente, sem deixar nenhum espaço e branco: trata-se de ser total(itário). Falo, aqui, não é significante da Lei, mas é, ele mesmo, encarnação da Lei literalizada em objeto dotado de extensão e materialidade brutais. A dominação do perverso totalitário, portanto, não se faz enquanto dono do falo, mas enquanto falo ele mesmo. O perverso não detém a lei, ele é a Lei.
Preciso fazer uma ressalva: seus apoiadores não têm nada de perversos. Eichmann em Jerusalém, o terror de Hannah Arendt, ao cobrir o julgamento do braço direito de Hitler, é que ele parece humano como eu e você. A única relação que os apoiadores do perverso totalitário têm com a perversão é que eles são seu correlato imediato. Eles são-no-mundo como eu e você, aterrorizados pela nadidade como eu e você, se estruturando em torno de uma casa vazia como eu e você. Seu único erro é que sua neurose é ingênua. Seja por uma análise mal feita, seja por falta de frustrações na vida, ainda creem que sua casa vazia pode ser preenchida até os ossos. Ainda não se deram conta de que estrutura não tem de ser estrutura = ordem. Neste sentido, o perverso totalitário que encarna a Lei e o neurótico ingênuo que procura a Lei encarnada para preencher seu vazio são correlatos perfeitos.
De volta ao panóptico foucaultiano, talvez tenhamos encontrado alguns esclarecimentos: talvez ele não seja totalitário, justamente por que, convenientemente, dispensa o perverso total, sua eficácia se garante por este seu correlato, o neurótico ingênuo. Talvez seja esta a marca distintiva da dominação e da estrutura = ordem: a literalização da Lei, encarnada em preenchimento. Enquanto não houver casa vazia (eternamente vazia, porque lhe escapa toda materialidade), não haverá libertação. A liberdade de ser só pode emergir do confronto pavoroso com o não-ser. E, ainda que se equipare à totalidade (porque o todo e o nada, na perspectiva da parte, dizem de uma mesma experiência), este não ser tem de estar sempre implicado na estrutura, para que a casa vazia seja vazia, permitindo o deslizamento de toda significação e todo sentido, libertando a estrutura da ordem.
Aqui vemos o que está em jogo estrutural e ontologicamente numa confusão da linguagem cotidiana. Quando o perverso totalitário recusa o título da perversão e, em nome da moral e dos bons costumes, o aponta naqueles que o combatem, faz do jogo perversão-subversão uma sinonímia. Mas perverter significa verter fora, lançar-se à estrutura de fora, como continente, para fazê-la ao seu modo, estrutura = ordem, de total preenchimento. Subverter é jogar completamente em outro terreno, como verter por baixo, é lançar-se à estrutura subterraneamente, rizomaticamente. Ambos têm em comum que não se contentam com a estrutura como ela se mostra, como interdição. Mas a perversão da interdição a toma para si em nome do gozo total e. enquanto gesto político, só pode ser totalitarismo. A subversão da interdição se implica nela, apostando na casa vazia, no eterno deslizamento do sentido, se fazendo gesto de transformação por dentro e, enquanto gesto político, só pode ser resistência – vida e desejo que resistem.

¹ Note-se o jogo de maiúsculas e minúsculas.
² O panóptico é uma estrutura prisional descrita por Foucault que consiste de uma torre ao centro, onde está (ou não) o vigia, circundada pelas celas. Sua eficácia está em que o vigia pode ver todas as celas, sem poder ser visto, de maneira os vigiados jamais podem saber se estão sendo observados. O projeto, até onde vai meu conhecimento, nunca foi implantado, mas pode ser reconhecido enquanto estrutura nas modalidades mais sofisticadas de vigilância.

Pedro H. Mendonça

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