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Nova Era e luta social



Antes de tudo, precisamos notar como o chamado Movimento Nova Era, em sua integralidade, é inseparável do mundo contemporâneo. Àqueles que não o conhecem, a ideia de Nova Era tem suas origens já no movimento hippie, ao melhor estilo John Lennon, imaginando a superação das nações, das guerras, do Céu e do Inferno, imaginando todos os povos compartilhando todo o mundo. É um movimento espiritualista que gira em torno de algumas ideias centrais:
a) No século XXI, intensifica-se uma mudança planetária que teve início no século XIX, chamada transição planetária, para uma convivência pacífica e harmônica a nível mundial (daí “Nova Era”). Em geral esta ideia vem associada à queda dos modelos estabelecidos de vida que causam sofrimento e desigualdade, bem como a uma maior preocupação com a experiência espiritual;
b) Todas as religiões e filosofias apresentam visões diferentes das mesmas verdades universais, o que leva a um certo globalismo religioso;
c) Com a maior atenção à experiência espiritual, buscam-se práticas cotidianas, como a meditação, muitas vezes abreviadas para caberem na rotina (e é preciso dizer que, geralmente, isso implica um aprofundamento muito menor nestas práticas);
d) À medicina tradicional, aliam-se novas terapias (as chamadas “holísticas”), que dão atenção mais humanizada e integral à manutenção da saúde (também não se pode deixar de notar a apropriação capitalista perversa destas terapias, em grandes centros de tratamento e formação);
e) Valorização da experiência pessoal (especialmente em termos espirituais), o que anda de mãos dadas com uma certa supervalorização do sujeito (“você pode!”).
É certo que há inúmeros pontos a serem melhor analisados aqui, alguns dos quais fui apontando ao longo desta lista, desde a apropriação capitalista do movimento até questões epistemológicas graves. Mas não é esta a intenção aqui. Quero, em primeiro lugar, chamar a atenção à relação destes princípios com o mundo moderno: religião universal para um mundo globalizado; cinco minutos de meditação diários para quem não tem tempo na rotina; “você pode!” para uma meritocracia falaciosa... Não quero dizer que não seja um movimento importante e, me parece, produtivo (embora, em grande medida, já pervertido pelo capitalismo selvagem e pela economia de mercado), mas não podemos atribuir unicamente a uma revelação divina aquilo que emerge justamente alinhado com a lógica do mundo moderno, aquilo que não poderia surgir em outra época. Aliás, num entendimento mais bem pensado do divino (talvez mais filosófico que mitológico), não seria a própria acontecência do mundo sua manifestação? Diria que a mudança divina não está numa revelação de fora para dentro do mundo, mas nos próprios movimentos em que o mundo se recria a cada momento.
Por fim, chegamos ao par Nova Era/mundo contemporâneo que dá título a este texto: a ideia de transição planetária. Não poderia haver um movimento religioso mais relacionado às lutas sociais que ganham espaço desde o século XIX. Digo “relacionado” em lugar de “alinhado” propositalmente. Isso porque, ao longo da lamentável apropriação capitalista do movimento, “mudar o mundo” se transformou unicamente em crianças índigo e cristais se encarnando para vibrar pelas criancinhas que sofrem no Iraque e pelos doentes que morrem nos hospitais (e não poderiam vibrar sem encarnar?!) – quando alguém põe a mão na massa, são projetos de caridade material, nunca políticas públicas ou quaisquer atuações realmente coletivas. Toda a dimensão política desta luta perdeu-se junto com o movimento hippie, restando-nos simplesmente seus aspectos que servem à perversão da meritocracia e de uma globalização falaciosa.
Para pensar sobre o assunto, me remeto ao último texto, publicado como especial de natal¹. Ali discutimos como a experiência religiosa, a busca pelo divino, só é potente quando Deus é uma pergunta, mais do que uma resposta; quando Deus relaciona-se com a incógnita da existência, sem jamais se tornar verdade última, total e, por isso, opressora. A experiência do divino ganha potência na medida em que resgata a própria indeterminação. Discutimos também (não só lá, mas também em Utopia do Desejo²) o quanto o compromisso com a própria indeterminação não é separável de um compromisso social, já que a (impossível) experiência do não-ser originário só se funda no laço social: é no encontro entre indeterminações que emerge a potência de ser (antropologicamente, diríamos que trata-se da fundação da cultura).
Disso pode emergir, de fato, um universalismo. No entanto, não basta buscar as semelhanças para se aproximar de uma suposta verdade universal. Pelo contrário, nesta perspectiva, a potência do mundo globalizado e de uma religião universalista está justamente no encontro com a diferença, com a pura diferença. Assim, “mudar o mundo” torna-se mais do que mero ideal de uma revelação divina, e os ideais de cultura de paz que já aprendíamos com John Lennon tornam-se condição sine qua non de qualquer verdadeira experiência religiosa.
E mudar o mundo é mais do que se tem dito: se você vibra pelas criancinhas do Iraque e reza pelos doentes de hospitais, parabéns, creio que lhes esteja fazendo algum bem, mas sinto lhe informar que isto não basta. Vivemos num mundo de matéria e gente, que só mudará com a atuação ao nível de matéria e gente. É preciso discutir, sim. É preciso tensionar as opiniões opressoras. É preciso ir para as ruas e gritar o que está errado. Estamos mais que saturados de escutar que a preocupação social não pode se transformar em guerra e reproduzir o ódio, mas é preciso ir além das aparências e reconhecer que nem todo amor é feito de calma, paz e fala mansa. O amor pelo mundo só pode se fazer enquanto compromisso com o movimento e com a transformação, enquanto compromisso com a dimensão coletiva do divino incógnito pessoal.
De fato, a luta não precisa se transformar em guerra, mas nem tudo que é turbulento é guerra. Enquanto o seu amor se resume a se calar em nome de uma falaciosa harmonia (lembremos que o silêncio do não-dito é mais grave do que o grito que diz o necessário!); enquanto sua atuação social se resume a uma oração pelo mundo; enquanto o seu perdão é da boca para fora e o discurso de ódio ainda te parece perdoável... enfim, enquanto o Movimento Nova Era não se comprometer com a luta social, não haverá Nova Era nenhuma. Precisamos, especialmente nestes tempos em nosso país, nos lembrar que a neutralidade em nome da paz só produz uma paz artificial, que se finge pacífica pelo silenciamento do oprimido. A verdadeira cultura de paz só se fará quando todos puderem falar, com toda a sua diferença! Enfim, precisamos lembrar que, antes de toda a transformação espiritual a que nos propomos com o Movimento (da suposta) Nova Era, há muita transformação material a ser feita – e o trabalho é muito maior que enviar amor!


Pedro H. Mendonça

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