Pular para o conteúdo principal

Mortos e complexos


Começo este texto com a voz da anima, com a voz dos mortos do Livro Vermelho, com as alter-vozes do mais dentro. E com o compromisso de ficar com a imagem. Em outras palavras, começo com o Jung do Livro Vermelho, não com o Jung do doutorado sobre uma médium espírita. Ou seja, com o Jung que fala com os mortos, não com o Jung que iguala os mortos a complexos. Não que me interesse chamar Jung de espírita ou místico, mas me interessa, antes de tudo, a atitude fenomenológica de validação da experiência por ela mesma. 
Não quero dizer que há mortos falando com Jung (apesar de que, a esta altura, ele está entre os mortos), que pudessem ser empiricamente comprovados – se é que isto vale alguma coisa. Meu único pedido aqui é que não descartemos a experiência atribuindo mortos a complexos, como fez o próprio Jung em seu doutorado, a partir de teorias pretensamente científicas, que faltam em sabedoria. Mortos e complexos podem andar de mãos dadas, mas muito antes disso, como tudo, os mortos são o que são: mortos. Não espíritos iluminados ou aguardando a reencarnação. Não projeções de complexos pessoais. Não fruto da imaginação ou personagens históricos. Se vejo um morto à minha frente é porque um morto, como ente intramundano, se mostra para mim. Está carregado de determinadas significações e emerge de um determinado campo de sentido, mas deixemos suas causas e suas motivações de lado por um momento.
O que a psicologia arquetípica nos pede com seu “fique com a imagem” é precisamente isto: deixemos que as coisas apareçam no esse in anima. Anima, que não é o espírito (perdido nas alturas de paraísos solares) nem o corpo (perdido nas profundezas da matéria e do instinto há muito abandonados). Esse in anima é deixar que as imagens falem e signifiquem por elas mesmas, como parte integrante de si-mesmo e do mundo – porque, afinal de contas, alma é anima mundi. Deixemos, então, que nossos mortos falem e signifiquem, sem atribuir-lhes apressadamente uma existência espírita reificada ou uma inexistência psíquica desvalorizada.
Lembremos que na relação com os mortos, como em tudo, estamos nós: nossas histórias, nossos sentidos, nossos produtos. Se um ancestral retorna de Hades e me traz uma mensagem, perguntemos, como em tudo: por que este ancestral? Por que esta mensagem? Mais do que para nós mesmos, perguntemos para a imagem: o que você quer? E nosso morto nos responderá, como responde o mundo, pelo simples fato de que somos o mundo ao nosso redor. 
       Não posso deixar de pensar no afirmam os espíritas (e aqui o escuto com olhar para a mitologia, não com olhar de um espiritualista): o obsessor se liga ao obsedado pela sua própria sombra, pelo seu próprio ponto fraco. O obsessor que você atrai procura a mesma coisa que seus desejos mais escuros. Ora, a recíproca não é verdadeira? Os mortos vejo, algo em mim escolhe vê-los, da mesma maneira como algo em mim, no dia em que isto importe, escolhe me mostrar uma flor jamais notada no caminho cotidiano.
   Que para os mortos, como em tudo, possamos abrir espaço para a experiência por si mesma, para o campo psíquico da anima mundi, para a imagem como ela aparece em sua significância própria. Sem verdades espíritas, sem verdades psicológicas, sem méritos ou deméritos. Deixemos os mortos falar e, como em tudo, que falem com eles nossos complexos.

Pedro H. Mendonça

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Subjetivação e ancestralidade: para fazer psicanálise em terras brasileiras

A história de nossa terra é uma história de sofrimentos. Sem dúvida, houve por aqui quem se deu bem no meio disso. É daí que saio, porque quem inventou o racismo foi o macho branco europeu, e quem o perpetua por aqui é um certo tipo que parece ter parado no tempo não ter saído do lugar. A pergunta é: o que faz com que até hoje a branquitude tenha medo da voz dos povos desde sempre silenciados? Comecemos pelo começo: quem inventou o racismo não é o mesmo português que o manteve por aqui. Quem, pra começo de conversa, se deu bem com essa história, voltou para casa - e levou junto nossa madeira, depois nosso açúcar, depois nosso ouro, depois nosso café. Quem instaurou o carrego colonial - como chama um pessoal que faz teoria a partir dos axés - voltou pra Portugal. Quem veio pra ficar, veio porque não era bem quisto lá. E a minha hipótese é que esse é o trauma fundante da violência da branquitude brasileira - nisso, talvez quem venha da história possa me ajudar a falar melhor. Sem panos q...

Curriculum... vitae?

Maria Luiza M. Paiva Como me escrever? E como escrever sem ser de mim? E que é a escrita se não a conversa com outro desconhecido? Não um outro qualquer, nem genérico, nem mesmo suposto… mas, sim, desconhecido. Em cada passo que dei em minha escrita - literária ou acadêmica - descobri cada vez mais que escrever é não saber, não só desse outro que me lê, mas sobretudo de mim mesma. Aprendi cada vez mais a sentar em frente à folha em branco sem ter a mais vaga ideia do que vai aparecer ali. Aqui. Como disse, são coisas que aprendi da minha escrita literária e acadêmica . O problema é que a academia não lida muito bem com isso. Na verdade, a universidade não suporta não saber. E a grande UNIficação do seu saber está nisso: o universitário (no masculino, de propósito) é regido incessantemente pelo seu saber sempre inconcluso, mas sempre prepotente, porque sua inconclusão é insuportável, e é justamente isso que o move. Falar na universidade desde outro lugar é não só um desafio, mas talvez ...

Por que o oriente? A simplicidade do Tao contra os dualismos da tradição ocidental

Tenho estudado o taoísmo. Menos pela filosofia da academia que pelo meu daimon esotérico. Mas o que me encanta nas tradições orientais em geral, e no taoísmo particularmente, é o inesperado parentesco com os pensamentos que me têm orientado no mundo dos saberes europeus. Não há influência direta, em geral. Quando muito, em Jung – mas convenhamos que, para fazer o que tenho tentado fazer do seu pensamento (e que me parece bastante próximo de tais tradições), é necessária uma leitura ridiculamente específica e crítica dos textos junguianos. Heidegger, Deleuze, Lacan... estes dificilmente teriam citado Lao-Tsé. Ainda assim, a filosofia taoísta, tanto quanto os pensamentos que me reinventam, poderia ser descrita inteiramente como uma filosofia da negatividade. No alto da escada das coisas sagradas, o Tao. Por um lado, absoluto; pelo mesmo lado, vazio. Já passei por isso aqui antes, e algum dia pretendo mergulhar de cabeça, mas por ora só repito que, de alguma maneira, o todo e o nad...