No
último texto, falamos sobre mortos e complexos, e dissemos, em suma: deixemos
os mortos falarem. Sem verdades espíritas, sem verdades psicológicas, deixemos
os mortos falarem na pura experiência fenomenológica do que têm a nos dizer. E
é evidente que, como em tudo, falarão com eles nossos complexos. Hoje, pergunto:
se falassem, que diriam os mortos do Brasil? E pergunto, é claro, porque ao
longo do último mês vimos “a morte ali na esquina”, como diria Mortícia Adams, desde
acidentes de helicóptero até enormes tragédias de lama tóxica.
Acontece
que a minha própria formulação me intriga: “se falassem”? Parece que a morte
desandou a falar no último mês (uma parte dela, pelo menos). E parece também
que ninguém parou para ouvir: todos se chocaram, se assustaram com o fantasma,
saíram correndo, e nenhum sequer deixou que os mortos falassem. Bem, não é
surpresa, afinal, a morte não vinha falando muito, vinha sendo dia a dia mais
silenciada na calada da noite (“chama o ladrão, chama o ladrão!”) – e isto em
muitos sentidos.
A
morte começou a falar já na campanha eleitoral: o incentivo ao ódio e uma
autorização descomedida deixaram vir à tona em multidões a pulsão perversa há
tanto recalcada. E não esqueçamos que se trata de um efeito duradouro: o problema
é muito maior que quatro anos. Ali a morte começa a falar e, curiosamente,
calando tantos outros.
É
verdade que uma boa parte dos mortos do último mês não têm que ver com isso:
alguns são fruto de um descuido (silencioso) muito mais antigo; outros são vítimas
de fatalidades. Em parte, a ligação de algumas destas mortes com o presente
contexto político não poderia ser senão em termos de sincronicidade (ausência de
relação causal, marcada pela relação a nível de sentido e significação, a nível
de Aion) – e a marca semântica que os une não é somente a morte, mas
especialmente a morte de pobres, mulheres, LGBT+, negros e negras,
esquerdistas... Bem, parece que se tem matado justamente aquilo que traz à tona
a sombra brasileira: a morte não tem sido símbolo do complexo que fala, mas da
própria (re)repressão do complexo.
Poderíamos
tratar aqui daquilo que denunciam algumas destas mortes: o descuido da Vale, a
fatalidade (?) de Boechat, os massacres polícias... o problema é que assim
estaríamos mais uma fez fingindo falar do problema sem realmente tocar o
problema. O problema real é que Dr. Jekyll está tentando matar Mr. Hyde. Então
se, no último texto, escutamos nos mortos os nossos complexos (Mr. Hyde), hoje vemos
o assassinato de Hyde. E nesta morte também falam complexos.
Retornemos
então à nossa formulação: “se falassem os mortos”? Bem, um deles está falando:
é a (re)assassinada sombra da esquerda (e digo sombra porque é ela quem evidencia
aquilo que o engravatado não quer ver, seu Mr. Hyde), junto com todas populações
oprimidas. Havia muito que os mortos quase não falavam, e uma autorização
perversa nos últimos meses fez falar a morte neste assassinato. Mas há outros
mortos, há muito calados, ainda calados... e cabe a nós encerrar este silêncio.
Quem
é vivo sempre aparece, e Mr. Hyde é sempre vivo. Aliás, sabemos desde Freud que
Mr. Hyde é a típica figura que quanto mais brutalmente atacada, mais
brutalmente reaparece – com o evidente correlato de, quanto mais amigavelmente
recebido, mais amigável será. Isto vale para dinâmica de massas tanto quanto
para psicodinâmica¹. Seja na esquerda elitista da academia, seja na esquerda militante
das ruas, é nosso dever fazer falar Mr. Hyde, recebe-lo amigavelmente e fazer emergir
a potência de transformação que o monstro brutalmente atacado – agora
reconhecido como humano (nunca mais monstro será!) – pode fazer brilhar no povo
do Cruzeiro do Sul.
¹
É claro que, idealmente, se há de buscar uma esquerda pacífica. Não escrevo
estas palavras como ameaça, mas como constatação da potência de um povo cada
vez mais morto (matado) e, se Deus quiser, cada vez mais redivivo.
Pedro H. Mendonça
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