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Carnaval
de 1989, carro alegórico da Beija-flor de Nilópolis levava o Cristo Redentor
vestido em farrapos, em meio à população miserável. A imagem foi proibida pela Igreja
e o Cristo, coberto, foi substituído pelos dizeres: “mesmo proibido, olhai por
nós”.
Então
é carnaval, pode tudo... ou não. Certamente, suspende-se a Lei, suspendem-se dominações
políticas opressoras. Acontece que, se por um lado a suspensão da Lei extravasa
potências recalcadas, por outro, a mesma suspensão da Lei extravasa a pulsão
perversa e opressora que queremos ver longe de nós. Esbarramos, na verdade, em
problemas mais gerais: a esquerda e a voz do inconsciente. Um dia volto mais
detidamente neste tema, mas não parece nada contraintuitivo pensar que fazer
esquerda é fazer falar a voz do inconsciente: a voz do reprimido, a voz do (propositalmente)
esquecido, a voz do marginal.
Neste
sentido, a grande festa brasileira, com seu pode
tudo, faz democracia, potencializa a diferença e abre espaço de catarse.
Antes de tudo, é preciso perguntar se esta democracia é mesmo para todos. É fato
que a diversidade se faz patente nas ruas, mas aquele adolescente em situação
de rua, há quinze dias sem banho, será bem-vindo no bloquinho? Aliás, a “segurança”
que acompanha o trio está lá para conter a “baderna”, não? Então não pode
tudo... Mesmo que se suponha um mínimo de segurança para que “cidadãos de bem”
não se matem uns aos outros, o que farão os fardados com o nosso protagonista
em questão, que incomoda a juventude rica de Pinheiros com seus cheiros? Há os blocos
assumidamente políticos, assumidamente voltados a certas populações. E é certo
que eles têm de existir, ao menos por enquanto! Mas que será que encontraremos se
escolhermos outro recorte, que não o sexual, para encarar um bloco LGBT+?
A
própria existência destes blocos denuncia que a democracia do carnaval não é
tão democrática assim: bela diversidade esta em que a população oprimida tem de
se juntar e se proteger com seus pares porque o bloco hétero agride; bela
diversidade esta em que a mulher tem de andar tatuada com “não é não”, e ainda
assim é assediada, porque o macho hétero sente-se liberado para o que bem entender.
Voltamos ao nosso ponto de partida: nem só de festa vive o inconsciente! A suspensão
da Lei liberta, sim, ao menos em parte, o oprimido e o marginal para fazer
vingar seu desejo. Mas no mesmo inconsciente libertado está a pulsão perversa
que subjuga o outro ao seu desejo.
É
aí que dizia que esbarramos em problemas mais gerais: é potente e importante
reconhecer a esquerda como a luta do inconsciente em desconstruir a repressão,
mas não basta. Isso porque, sabemos desde O
mal-estar na civilização que a ausência da repressão destruiria a
sociedade... mas não é também questão de encontrar meios termos, de procurar a
medida certa. Não é questão de “repressão, mas não tanto”. A questão é que nem
só de potência vive a esquerda. Sim, precisamos da potência do inconsciente
para desbancar a opressão, mas nos destruiremos se não formos capaz de aliá-la
a algum princípio ético. Princípio ético que não subjugue a própria potência.
Ao contrário, princípio ético que emerja em decorrência dela: plural, diverso...
potente.
A
Utopia do desejo¹ estabelece que seu
princípio ético está no desejo enquanto contradição. Isto porque o desejo, a
mesmo tempo que é potência singularizada do Real, só pode vingar na cultura, no
encontro, no Outro. Assim, o honestidade ética em relação ao desejo não é só
pô-lo para fora e fazê-lo cumprir, mas implica também honestidade em relação a
esta contradição: desejo e desejo do Outro, parte e todo.
O
carnaval, então, mesmo se um dia idealmente diverso e democrático, se faz símbolo
desta carência: onde, junto à potência, encontraremos um princípio ético possível
à pluralidade? Talvez valha mesmo dizer: um princípio ético que não seja
humanista², pois que não lhe interessa uma igualdade universalista, mas lhe
interessa sobretudo a universalidade da diferença. O carnaval (aliás, a
esquerda) só será da diferença na medida em que encontrar este princípio ético
que faça valer a diferença.
¹
Utopia do desejo: um projeto político e subjetivo,
03 de setembro de 2018 (https://entredois-phmendonca.blogspot.com/2018/09/utopia-do-desejo-um-projeto-politico-e.html)
²
Um dia, talvez, podemos discutir a falácia humanista em supor uma essência
humana que fundamente sua ética. Por enquanto, teremos de penar com as Cartas sobre o humanismo heideggerianas.
Pedro H. Mendonça

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