Mal
e bem, guerra e paz, raiva e paciência, medo e coragem, ego e transcendência...
são tantas as oposições que nos constituem, no âmago do humano. Erro e acerto.
Erro? Medo é erro? Raiva é erro? Ego é erro? Um afeto que me invade
corporalmente, ou uma estrutura que se funda nos limites difusos (no
não-limite, na verdade) entre natureza e cultura – coisas assim não partem de
escolhas, não são controladas, não são controláveis. Isso não quer dizer, é
claro, que devemos amassar o carro do primeiro apressado que nos feche no
trânsito.
Saber
que não posso evitar o mal (e me refiro a todo um pacote de afetos, desejos e
atitudes assim rotulados) é o primeiro passo para a saúde. Isso porque, ao
levar a fechada no trânsito, se quero lutar contra a raiva, sentirei, sim,
raiva. E pior: se somará a culpa por sentir raiva. Ou, ainda, jogarei ambas
para debaixo do tapete (sem nem querer saber que tipo de poeira estou varrendo
– o que dificulta em muito saber a melhor forma de limpar), e morrerei de
alergia quando quiser me deitar sobre um chão macio. É verdade que ainda há,
neste assunto, muitas discordâncias entre as mais diversas psicologias e teorias
do comportamento, mas em algo concordamos: o que não vive pelas palavras, vive
pelo corpo. Mas, de toda forma, o que fazer, então, quando sentir raiva, se não
amassar o carro alheio ou jogá-la para debaixo do tapete?
Antes
de tudo, parece supreendentemente válido retomar um pouco de metafísica, porque
uma pergunta histórica emerge: se Deus é bom, por que criou o mal? E as
respostas são as mais diversas: o mal é simplesmente a ausência de bem, como o
silêncio é a ausência de som; ou o mal é criado pelo homem, não por Deus; ou mal
provém do afastamento de Deus. Ora, no primeiro caso, ao criar o bem, Deus cria
também necessariamente seu correlato (e duvido que, onisciente, não saberia
disso); no segundo, criando o homem e dando-lhe o livre-arbítrio, Deus deu a
possibilidade de existência do mal, o que pode soar como um eufemismo, mas não
alivia em nada sua culpa; no terceiro, diria que soa um tanto ilógica a ideia
de afastar-se de Deus numa existência criada por Ele, em que Ele é onipresente.
Por
que cargas d’água, então, Deus criou o mal? Talvez a resposta mais simples
seja: não criou. O mal não existe (aliás, também o bem não existe). O que
existe, o que nos invade, o que recebemos do mundo e do corpo são a raiva, o
medo, a tristeza, o ego – enfim, todo este pacote de afetos, desejos e
atitudes, que chamamos de maus, de ruins, pelo simples fato de serem
desagradáveis (a nós e aos outros). Estas coisas, sim, existem, e não são boas
nem más: isso são nomes que damos de acordo com o prazer ou o desprazer diante
delas, somando-se uma determinada moral de nosso tempo, que não passa de um
contrato que assinamos na infância para a boa convivência. Se queremos
responder aos filósofos, o mal não exite em si mesmo, Deus não o criou. Deus
criou coisas que chamamos boas e más (e que passam, no nosso alienado mundo da
vivência, a sê-lo) por não sabermos para que servem.
Para
os céticos, podemos seguir uma linha mais ateia, mais próxima do budismo. Basta
pensar que bem e mal (repito que me refiro a pacotes de pares de opostos que
nada têm em comum a não ser nosso julgamento moral) são partes da realidade
humana e trocar “Deus” por “Todo”, “cosmos”, ou o que for (e, é claro, “criação”
por “existência” simplesmente). Portanto, querer somente o bem, o feliz, o
pacífico não dá conta de nossa existência, nem em termos de sua dualidade, nem
em termos de busca por equilíbrio. Querer somente o bem, nas palavras de Osho,
é uma “meia verdade”. Bem e mal (e todos os inúmeros pares de opostos com que
lidamos cotidianamente) são as contradições e conjunções constituintes de nossa
existência.
Sobretudo,
para os espiritualistas e para os junguianos, se queremos superar (ou
transcender, como queiram – de todo modo, me pergunto se deveria ser mesmo este
o projeto) nossa existência dual, polarizada, jamais o conseguiremos escolhendo
um lado e evitando o outro: isso seria dar mais força à polarização, e,
portanto, a ambos os lados (além, repito, da culpa e da angústia quando o “mal”
emergir das sombras). Um exemplo: ao insistir que gosto de calor (SAP: ele me é
mais agradável), reitero cada vez mais meu o incômodo que o frio me provoca,
alimento um e evito o outro, deixo de ver as desvantagens do calor e as
vantagens o frio. Isso não quer dizer que eu não possa ter uma preferência, só
quer dizer que tenho que a reconhecer como minha e não da coisa e, mais ainda,
que tenho que reconhecer que em tudo existe
ambivalência. Se queremos a unidade e a totalidade (e isso, me parece, é a
busca dos budistas, dos espiritualistas e dos junguianos), temos de reconhecer
a existência e o valor dos opostos. E mais: teremos de suportar a contradição e
mantê-los convivendo.
Agora,
positivo é o que está presente; negativo é o ausente (lembram-se da
matemática?). Mas, em nome da “positividade” (leia-se, em termos mais
rigorosos, “bem-estar”), nega-se um mal presente, em busca de um bem ausente,
transcendente até, esquecendo-se de que são categorias nossas, esquecendo que
os opostos são necessários, esquecendo que fazemos dois pacotes de pares de
opostos e rotulamos – nós que rotulamos – um deles como mau, como ruim, às
vezes, até como trevoso ou demoníaco.
Além
disso, já tentou comer uma maçã com um nível zero de agressividade? Ela é
necessária para morder, para cortar. Atravessar uma avenida com um nível zero
de medo? Atropelamentos são prováveis. Um professor sem orgulho e vaidade?
Raiva e força, medo e cuidado, arrogância e confiança, mais outros tantos
defeitos e qualidades, não têm outra diferença se não sua utilização e a
aplicação útil e produtiva destes afetos.
É
preciso não lutar contra o mal, é preciso encontrar sua função no universo de
forma quase aristotélica. Às vezes, pensamos que “positividade” é, mesmo
estando na lama, nunca tirar os olhos do paraíso. Mas a verdadeira positividade
é o positivo: o que está presente, com o valor e a utilidade que damos a ele. A
verdadeira positividade é, estando na lama, fazer uma escultura.
Pedro H. Mendonça
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