Em Utopia do desejo [1], sinalizei uma dívida da Psicologia com a sociedade:
modos de singularização – aquela que buscamos em análise – que atuem no coletivo,
que possam produzir uma ética do desejo e da contradição para além dos limites sociais
e quantitativos da clínica tradicional. Dizia que as atuações coletivas da
psicologia têm substituído a psicoterapia, com seus ideais de cura e alívio de
sofrimento, mas não a análise, esfacelamento do sujeito dado como a priori, escancaramento do vazio, da
pluralidade e do impossível. Hoje, talvez, eu traduzisse isso pelo sujeito
residual deleuziano, pelo desejo que se movimenta sem eu ideal, na
multiplicidade fluídica do corpo-sem-órgãos.
Algum tempo atrás, fui questionado
sobre a prática de grupos – que vinha incluindo na lógica da cura, onde o encontro
de dores semelhantes aplacaria a dor de cada um. O grupo como encontro
identitário configura-se, de fato, como prática normativa e reforça
individualidades imaginárias insustentáveis. Aqui não pode haver ética.
Enquanto há idealidade e identidade, orientamo-nos por um Outro total (A),
produzimos dominações, criamos normas e exclusões. Acontece que um grupo não é
só identidade. No encontro de vários, estão postas diferenças e conflitos. Mas
eis um trabalho de grupo com o qual, nos meus cinco anos de graduação, não cruzei...
até agora.
Menos de uma semana depois, me
deparei com o texto Dispositivos em ação:
o grupo, de Regina Benevides [2]. Pensar o grupo como dispositivo é,
evidentemente, pensa-lo como dispositivo de poder (afinal, não há dispositivo
que não o seja). Mas a autora mostra que não é aí que está a potência do grupo,
mas nas linhas de fuga que percorrem subterraneamente todo dispositivo. Como
dizia: ainda que centrado no encontro de identidades, o grupo também é encontro
de diferenças. Venho então, antes de tudo, me redimir: há uma psicologia por aí
(bastante desgarrada de sua função psi, digamos) que anda pensando a subversão
do grupo [3]. E pretendo construir esta redenção pensando: como, então, o grupo
pode nos servir para movimentar honestamente
o próprio desejo e as próprias contradições?
Para isso, precisamos lembrar que as
contradições a que me referia são próprias da alteridade que funda o desejo. Ou
seja, para haver honestidade ao movimentar o desejo, ele terá de estar
implicado com o desejo do outro (do Outro, caso queiram, aqui Ⱥ). Hoje penso
que essa alteridade, ainda que em certa medida social, é muito mais fundada na
alteridade do próprio sujeito, na alteridade do seu impossível – no caráter alheio
de seu desejo. Gosto de pensar na imagem do corpo-sem-órgãos, puro fluxo molecular,
anterior a toda estabilização identitária, anterior a todo organismo. Esta
multiplicidade molecular transforma meu Outro num “puro Outro”, puro movimento,
pura diferença. Mais do que Outro de mim, é Outro em decorrência de sua pura
alteridade. Eis um princípio ético decorrente da contradição e do desejo: uma
ética da diferença. Fundada numa ontologia do Real do corpo-sem-órgãos,
anterior a toda coletividade, uma ética da diferença repercutirá, evidentemente,
no nível macro dos encontros de pessoas singulares – jamais individuais, abandonamos
a muito tempo a individualidade!
E que tem isso com o grupo? Por
enquanto, vinha remendando a Utopia do
desejo com aquilo em que ela se transformou nestes meses desde então. Mas a
contradição do desejo, a diferença como fundamento oferecem novas possibilidades
para pensar o grupo. Impossível não pensar que há no grupo uma certa estabilização
imaginária – basta lembrar de sua definição clássica: conjunto de pessoas com
um objetivo comum. Objetivo comum é idealidade. Objetivo comum é definição. Objetivo
comum é identidade. Objetivo comum é supressão da singularidade. Objetivo comum
é o Pai de Totem e tabu centralizando
a estrutura, ainda que morto. Eis a diferença que fazia entre o neurótico ingênuo
e o neurótico singularizado [4]: o primeiro, esperando a Lei encarnada que totalize
materialmente o ponto de estofo de sua estrutura; o segundo, operando a
pluralidade em torno, sim, de um ponto de estofo (afinal, neurótico), mas que
se estofa de nadidade, casa vazia que opera o movimento. O primeiro suprime o
corpo-sem-órgãos em nome da identidade estabilizada, o segundo se utiliza de
uma identidade vazia para movimentar o corpo-sem-órgãos.
Por isso direi que a linha de fuga
do grupo, sua potência de singularização, é justamente que deixe de ser grupo.
Mesmo que continuem se encontrando aqueles sujeitos, têm de deixar de
constituir grupalidade imaginária, têm de se tornar encontro de multiplicidades.
Grupo é dispositivo e, como tal, só pode ser dispositivo de poder. O grupo terapêutico,
a promoção de bem-estar, o conforto das identidades... o grupo tal como tem
sido pensado (enquanto grupo) – este grupo mata. Mata porque quem estabiliza é
pulsão de morte. Simbolizar um grupo é esvaziar sua grupalidade – não de sua grupalidade, é a grupalidade que
se esvazia, para se tornar casa vazia. Neste encontro de multiplicidades, grupalidade
só pode ser significante vazio (fálico, se quiserem, desde que se o entenda
bem) à serviço da diferença, jamais significante totalitário supressor da
diferença. Criemos grupos terapêuticos, mas os transformemos em “antigrupos” ou
“desgrupos”, supressores de toda imaginarização da coletividade que nos tem
impedido de movimentar honestamente o
próprio desejo e as próprias contradições.
[1]
Utopia do desejo: um projeto político e
subjetivo, https://entredois-phmendonca.blogspot.com/2018/09/utopia-do-desejo-um-projeto-politico-e.html
[2] Palestra proferida na mesa redonda Dispositivos em ação no evento Subjetividade: questões contemporâneas, na UFF, em 1995. Alguns sites que demandam cadastro disponibilizam o pdf, infelizmente não encontrei nenhum livre para disponibilizar aqui.
[3] Como disse, os pensamentos que me levaram a este texto surgiram precisamente da falta de contato com esta psicologia. Caso os leitores tenham material a sugerir nesta direção, agradeço a troca.
[4] Tratei dela em Perversão ou subversão? (Do totalitarismo à resistência), https://entredois-phmendonca.blogspot.com/2018/12/perversao-ou-subversao-do-totalitarismo.html
Pedro H. Mendonça
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