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O campo psi: operador na cena da falácia das ciências humanas


Há alguns meses fui inquirido, enquanto estudante de psicologia, sobre nossa epistemologia. É claro que minha resposta foi um grande improviso bagunçado sobre abordagens e, no fim, falei, falei e não disse nada. O fato é que não temos epistemologia e, por isso mesmo, produzimos mais e mais abordagens sem ter fim. Mas não é à toa, nosso problema é o problema das humanidades. É conhecido o enrosco epistemológico de se construir ciências humanas: o campo põe o sujeito no lugar de objeto. A bem da verdade, as humanidades põe em jogo o engodo cartesiano do dualismo sujeito-objeto (para não falar de outros). Nas ciências da natureza, vá lá, muito produtivo; para nós, a coisa bambeia. De alguma maneira, a psicologia não conseguiu se resolver com isso – me parece que talvez por sua própria constituição. Nossos colegas vêm encontrando modos de se desvencilhar do problema separando de algum modo seu objeto do humano propriamente dito: a antropologia estuda a cultura; a história, uma sequência de fatos; a linguística, a linguagem... De algum modo, não dá para fazer isso com a psique da psicologia.
É bem verdade que se tentou, e ainda se tenta, fazer psicologia a la ciências naturais, especialmente na psiquiatria tradicional de DSM e nas psicologias comportamentais, em geral. A elas, oponho as psicanálises – e aqui estendo o sentido de psicanálise amplamente (e não sou o único), veremos por quê. É fato que também há, entre elas, quem procure fazer ciência, mas há um certo rompimento que marca a virada de paradigma freudiana que permeia todas as linhas de psicanálise e todas as alguma-coisa-análises que surgem se opondo a ela (e não adianta chorar, não é à toa que em todas elas há quem ainda se diga psicanalista). Declaradamente, a virada em direção ao sentido: não interessa mais nenhuma causalidade do sintoma em nenhum âmbito naturalista, mas tão somente as significações tecidas com e em torno dele para o sujeito, o lugar que ele ocupa na teia de relações simbólicas (aí, propriamente, sentido).
Aqui, uma pedra angular, paradigmática, para todas as psicologias que se constituem na relação (de amor, ódio ou ambos) com Freud, a saber, todas as formas de psicanálise, a psicologia analítica, a daseinsanálise, a esquizoanálise. Todas elas, em algum tipo de relação com a psicanálise, põem em jogo o problema do sentido. Temos então, talvez, o esboço de um campo psi (não exatamente psicológico, porque não é ciência há muito tempo, mas também não exclusivamente psicanalítico, ao menos se nos limitarmos ao que chamamos com unanimidade de psicanálise). Mas como desenhar um campo psi antes de desenhar um campo para as humanidades, um que não assuma a forma de ciências humanas, com sua falácia epistemológica?
A bem da verdade, a reviravolta psi não está isolada. O trajeto de Freud a Lacan – talvez, mais radicalmente, a Deleuze – é paralelo a toda uma trajetória percorrida do estruturalismo clássico ao chamado pós-estruturalismo. O primeiro inventando concepções revolucionarias de mundo, o segundo levando à radicalidade estas ideias, cujas implicações parecem passar desapercebidas pelos pensadores originais. Freud talvez não tenha se dado conta de que a questão do sentido implica necessariamente a questão da negatividade; Saussure, Jakobson e Lévi-Strauss, por sua parte, talvez tenham ignorado que a noção de estrutura implica a impossibilidade de fazer ciência tradicional. Estrutura e sentido, eis o fundamento das humanidades que começam a se desenhar. Não a estrutura enquanto ordem universal, não o sentido enquanto mera atribuição de significado, mas sim estrutura e sentido enquanto autopoese do mundo, implicada em sua própria negatividade.
Negatividade, eis a palavra chave. Às vezes, ela tem sido posta como uma forma de transcendência: uma negatividade que está lá, distante do mundo vivido. Mais interessante, porém, (e talvez mais contemporâneo... se bem que mais nietzschiano, ao mesmo tempo) é pensar uma negatividade imanente. Não mais externa ou anterior ao mundo, esta noção fala de um certo impossível, que constitui a própria borda da experiência possível – borda esta nada estável, gingando no curso da história. Note-se que a psicanálise, então, não pode de maneira alguma se querer ciência, assim como não pode nenhuma de suas decorrências críticas. Ao contrário, o paradigma do sentido, levado à sua radicalidade (embora seja verdade que isso não é feito por toda parte), só pode ser um paradigma do não-saber. Não que não se saiba de algo, mas há algo que não se pode saber: a negatividade da produção do saber a partir de si mesmo.
É uma heresia chamar por um nome identitário estes franceses (tão diferentes entre si) que deram vida a um projeto pós-identitário para as humanidades. Mas, se houver alguma razão para tratar de “pós-estruturalismo” (assim, como uma unidade) um movimento da diferença, esta razão tem de ser precisamente a reviravolta pós-identitária. Não há identidade, nada está dado por si, cada singularidade só se produz em discurso, na articulação simbólica – que implica, ela mesma, a negatividade de cada um de seus elementos. Assim, a produção do saber a partir de si mesmo: o objeto de todo discurso se constitui pelo próprio discurso que, por sua vez, trata incessantemente de seu objeto. Há aí o caráter histórico do saber¹ e, portanto, o impossível de todo saber.
O que quero mostrar é que, com o paradigma do sentido inaugurado por Freud, todo campo psi possível é de um psi do não-saber – não mais psicologia, mas psicanálise. Mas este não-saber detona a ideia de um campo psi. Num primeiro momento, me parecia que precisávamos constituir o campo das humanidades (agora já bem diferentes das ciências humanas) para, dentro dele, constituir um campo psi. Acontece que a segmentação dos saberes ainda é... bem, é dos saberes. A ciência moderna se reparte em áreas de conhecimento. Pensar um novo paradigma para as humanidades implica, ao menos num primeiro momento, pensa-las como campo único, ainda que múltiplo. Não é à toa que os tais franceses eram tão diversos: historiadores, psicanalistas, antropólogos, filósofos... O que lhes interessa não são suas áreas específicas, mas outro espaço de pensar a ontologia e a epistemologia.
É claro que há particularidades do trabalho psi – a clínica, em seu sentido mais amplo. Mas não é a clínica um trabalho sobre e no discurso? E não é o discurso que, em suas diferentes nuances, tem se constituído como fundamento do humano? Talvez estas diferentes nuances levem a consequências importantes para seus respectivos campos, é fato. Ou elas, ou as particularidades do trabalho, nos levarão provavelmente a segmentar nosso não-saber, mas não chegamos lá ainda. Mal sabemos, em âmbito geral, as consequências de nosso recente e frágil paradigma. Aliás, mal fizemos se encontrarem as noções de estrutura e de existência, seus fundamentos mais basilares². Por enquanto, humanidades não-ciências para tratar de um humano-discurso de saber impossível. Quem sabe, em breve, tenhamos condições de estabelecer nossas consequências particulares para o trabalho psi...

¹ Em discussões recentes, descobri a reviravolta de pensar que a epistemologia precede a ontologia (ao contrário do que toda a filosofia da ciência faz pensar)... ou, ao menos, ambas só acontecem ao mesmo tempo, emergem no mesmo ponto da produção do saber.

² Deixei de lado, neste texto, a ­ex-sistencia heideggeriana e o existencialismo (?) daí decorrente. Diria que se trata de um percurso semelhante ao da noção de estrutura, que segui aqui. Com a ressalva de que, provavelmente, seguir o existencialismo culminaria também no pós-estruturalismo: primeiro, a primazia da epistemologia sobre a ontologia notada acima causa complicações a Heidegger, mas, segundo e mais importante, a radicalidade do filósofo sobre a negatividade (ex-sistencia) foi indispensável para a radicalização da noção de estrutura por parte de Lacan, Deleuze, Foucault e seus demais companheiros.

Pedro H. Mendonça

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