Cena 1 - Platão: Mundo das ideias.
Verdadeiras verdades. Bem conhecemos o mito da caverna. Experienciamos um mundo
sensível, feito e sombras ilusórias, projeções mal acabadas do mundo lá fora.
Quem sai ofusca-se, mas logo pode ver as formas originais, imutáveis, as
essências perfeitas. Ao retornar, será desacreditado. Mas eis o filósofo. A
verdade e o bem estão lá.
Cena 2 - Cristianismo: o Criador
anterior à criação. Deus está lá fora, num paraíso perdido. Talvez nosso mundo
não seja pura ilusão como pretendia Platão, mas a verdade fundamental está em
Deus, puro bem. Muitas vezes, a carne é o fundamento do pecado. As tentações da
terra afastam o homem de Deus. O mal é da terra. Do mesmo modo como estava
antes, Ele estará depois. O juízo final. A verdade e o bem estão lá.
Cena 3 - Descartes: a dúvida
hipebólica. Certamente, um critério potente. Mas não posso duvidar de que
duvido. E a dúvida é indubitável, quem duvida é indubitável: cogito, ergo sum.
Coisa que pensa, res cogitans. Critério de verdade sobre a experiência
sensível, a matéria dotada de extensão, res extensa. Ainda uma vez, o
sujeito transcende a experiência, esta sempre dubitável. A verdade e o bem
estão lá.
Três pilares fundamentais, em três
tempos diferentes, de um mesmo dualismo: aqui, a ilusão e o mal; lá, a verdade
e o bem. A tão falada metafísica da tradição. O problema é: quem está lá? Se
este é o critério, não pode haver verdade, porque lá é uma experiência
impossível - tanto é que é transcendente. Se fosse acessível, não seria
transcendente, seria, quando muito, ausente. E nem adianta dizer que superamos
o dualismo. A verdade das coisas que uma ciência empírica quer é ainda um
essência imutável, atemporal e perfeita. Por mais que esteja no aqui das
coisas, ainda é um lá.
Mas que há, se não identidades
estáveis? Que são as coisas, se não forem o que são assim de forma dada? O
problema é a pergunta. Perguntar o que é ainda assume algo que é, fixo e
verdadeiro, para além da transitoriedade e impermanência do aqui, este
realmente vivido. Que resta? Mutação. Se tudo que pode tocar o humano é
mutação, parece mais honesto perguntar como do que o que. Gustavo
Alberto Corrêa Pinto, no prefácio à tradução brasileira do I Ching¹,
deixa claro: “não há o que mude, não há quem mude, pois só há o
mudar. Supor que algo ou alguém muda é supor esse algo ou alguém fora da
mutação, sofrendo-lhe então a ação.”
No âmbito do pensamento ocidental,
algo desta honestidade rastejou subterraneamente sob o dualismo tradicional, a
começar com os estoicos. O acontecimento, efeito de superfície, resgatará Deleuze. Algo, sim,
maior que a experiência concreta da matéria - seria ingênuo supor que o
concreto é tudo que há - mas que não a transcende, mas se determina pela
materialidade do acontecimento, ao mesmo tempo que produz a própria matéria.
Como superfícies. Superfícies não são coisas dotadas de propriedades; se o
critério for a concretude, não existem. E no entanto, elas insistem. Insistem e
são feitas de encontros: nada há entre a água e o ar, mas eis ali uma
superfície. Tal como nos famigerados afetos de Espinosa: não transcendem a
substância, mas acontecem a ela. Alegria e tristeza como aumento e diminuição
da potência de agir - também feitas de encontros. Culminam num ápice mais atual,
Deleuze. De tudo que reeditou dos acontecimentos estoicos e dos afetos
espinosanos, já temos o bastante.
Em que se pode reconhecer o
estruturalismo? é um artigo que o dito
cujo escreveu a uma enciclopédia, e pode-se dizer que o estruturalismo ali
apresentado já vem bastante subvertido - radicalizado, para não soar pejorativo
aos ouvidos leigos. O que nos importa é que ali Deleuze nos mostra um dos
maiores méritos da noção de estrutura. A estrutura não está lá, acontece
no próprio mundo vivido (não é “ideal”, dirá). Ao mesmo tempo, não está aqui,
não se reduz à concretude positiva do mundo (não é “atual” ou “real”). Mas ela
atualiza no aqui seus germes, suas potências virtuais (é o termo
que sugere). Em outras palavras, a estrutura é da mesma ordem do acontecimento
e dos afetos: ela não transcende os estados de coisas, mas não se reduz a eles,
ao contrário, acontece a eles, enquanto processo, enquanto movimento, enquanto…
mutação?²
Depois de um certo rodeio, volto ao
oriente. Desde a primeira vez em que abri o I Ching (e o efeito se
repete com o Tao-te Ching), me encanto com a ontologia ali descrita, tão
correspondente às considerações a que tenho chegado com os complexos
pensamentos europeus³. Mas passei meses com uma pulga atrás da orelha: céu e
terra. São imagens fundamentais ao pensamento chinês em geral, e a base dos
dois trigramas mais importantes do I Ching. Ch’ien, o Criativo,
na imagem do céu, gera com toda sua força as imagens do mundo. Kun, o
Receptivo, na imagem da terra, se submete às imagens do criativo e lhes dá
forma com toda a concretude da matéria. Não parece Platão?
Não.
Bem, sim, a primeira vista parece.
E era o que estranhava: o que aconteceu com toda a primazia da mutação? Onde pode
entrar uma lógica das essências, das imagens originais, como esta em meio a um
sistema inteiramente pautado na mutação? Eu brincava de leituras subversivas,
me apropriava de Ch’ien para dizer o que eu queria dizer (e antes que me
acusem, tinha plena consciência disso, se me pedissem para explicar o que
aprendi diretamente do I Ching, eu poderia). Transformava o céu em
acontecimento, as imagens em processos. Lia a sua força criativa tal como
Deleuze lia a estrutura: não uma imagem criativa anterior aos estados de
coisas, mas como a potência da criação no próprio acontecimento, no próprio
devir (para inserir mais uma palavrinha na lista de virtualidades).
Até então, tinha uma leitura. Muito
pessoal, e provavelmente subversiva. Agora tenho uma escrita (não a reescrita
que todo leitor faz de qualquer texto, mas uma escrita de próprio punho). E
escrevo porque descobri não ser tão subversivo assim. Em primeiro lugar, o
aparente dualismo entre Ch’ien e Kun não é tão dual assim. Ainda
que Kun se submeta a Ch’ien, não se trata de uma hierarquia de
qualquer tipo. Pelo contrário, se trata de uma interdependência: nada pode a
imagem que não se materializa, tanto quanto de nada serve a terra livre que não
tome forma. Aí, já uma desculpa para escapar ao platonismo.
Mas disso eu já sabia. O que
encontrei de magnífico na última vez que li os textos originais é a associação
de Ch’ien ao tempo e de Kun ao espaço. Esta segunda parte é
bastante evidente: o Receptivo é aquele que dá matéria à imagem, que faz com
que ela se manifeste, precisamente, no espaço. O tempo me intrigou. Nenhuma
associação muito evidente se lemos as imagens como imagens originais.
Por outro lado, uma leitura mais interessante (e, talvez, menos ocidentalizada?) é que as
imagens sejam potenciais. Falamos da mesma dinâmica entre os trigramas,
mas a segunda opção soa menos platônica e menos dualista. A potência está no
próprio processo, na própria mutação. Não nas coisas exatamente, mas no modo
como acontecem. E, com esta leitura, as razões do tempo aqui se evidenciam. No
espaço, formas estáticas, estados de coisas. No tempo, a mutação e suas
potências, acontecimentos.
Talvez ainda se trate de uma
leitura muito particular do antigo texto, nosso velho sábio chinês - brinco que
jogar as moedas é como conversar com um velho sábio chinês, com toda a
personificação que isto põe em jogo. Mesmo com toda a particularidade deste
entendimento, agora que encontro no próprio texto algum fundamento para o que
penso, autorizo-me a compartilhar. E tenho dois motivos para tanto. Primeiro,
compartilhar pensamentos (que são acontecimentos!) para oferecer o que de mais
singular posso oferecer e para os encontros continuem produzindo algo novo.
Segundo, como uma particularidade destes encontros, para por minhas ideias à
prova de quem o estude. Talvez para repensá-las, ou talvez simplesmente para
saber se digo “isso é o I Ching” ou “o I Ching me provocou
isso”.
¹ Tradução para o alemão de Richard Wilhelm, editora
Pensamento.
² Não preciso lembrar que a estrutura também é uma dinâmica
relacional, preciso? Veja-se Oposição e estrutura: fundamentos originários?
(https://entredois-phmendonca.blogspot.com/2018/08/oposicao-e-estrutura-fundamentos.html)
³ A não ser, precisamente, por tal complexidade. O Tao
é fácil e simples. Sobre isso, continuo jogando com o último texto Por que o
oriente? A simplicidade do Tao contra os dualismos da tradição ocidental (https://entredois-phmendonca.blogspot.com/2019/05/por-que-o-oriente-simplicidade-do-tao.html)
Pedro H.
Mendonça
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