Os
caboclos, os pretos-velhos, os marinheiros, os baianos... Lembro do primeiro contato
que tive com um guia da linha dos malandros, que, com seu sorriso sambista e
seu sotaque baiano, me dizia:
—
Estou aqui para ensinar da luz que tem no samba. Sempre que precisar ensinar
pra alguém que na favela também tem Deus, tu pode me chamar!
Lembro
também da pombagira que ensinava para o querido Alexandre Marques Cabral que pombagira
é puta que morre na fogueira, mas rindo da cara do inquisidor – contando junto,
aliás, que era preciso saber para quem
a pombagira ri e de quem ela ri; que
homens e que mulheres?
E,
um último fragmento para esta abertura, dizia o Exu Caveira com quem trabalho:
—
Não é à toa que esquerda é esquerda na umbanda e na política.
Índios,
escravos, caiçaras, baianos. A morte no exu de cemitério, o sexo na pombagira
da fogueira. A malandragem falando de samba e de favela. Não, não é qualquer
grupo que se torna uma linha de umbanda. E isso tem de ser entendido na própria
história da religião.
Muito
mais recente que a maior parte das tradições de matriz africana
institucionalizadas, a umbanda nasce no seio do kardecismo. Pai Zélio de
Moraes, o primeiro babalorixá da umbanda, tendo sofrido de algum mal físico foi
levado a um centro espírita de mesa branca. Já depois de ter passado por seu
tratamento, numa reunião do centro, Zélio é inspirado a se levantar e buscar
uma flor para trazer à mesa (quem conhece o kardecismo conhece bem a mesa
limpa, com uma toalha branca e, quando muito algum recipiente com água, da qual
ninguém se levanta antes de encerrada a reunião). Num segundo momento da mesma
reunião, Zélio recebe o espírito de um índio que, falando um português simples
e tido como errado segundo uma gramática tradicional, se nomeia como Caboclo
das Sete Encruzilhadas.
A
partir de um modo parcial e ingênuo de ler a doutrina espírita, o dirigente do
centro investe em afastar ou doutrinar a entidade, julgando-a atrasada, pouco
evoluída. Em intensas discussões, o caboclo denuncia os preconceitos em jogo na
cena, a recusa em receber espíritos de índios e negros, o elitismo dos
critérios de avaliação dos espíritos, apontando que a religião não fala ao povo
brasileiro. Podemos talvez acrescentar: não fala ao povo brasileiro, se não
àquela elite colonizada e moldada como espelho da Europa que pare o kardecismo.
Não recebendo crédito por suas palavras, o caboclo institui que no dia
seguinte, às 20h, o povo se reuniria na casa de Zélio e ali ocorreria a
primeira reunião de umbanda, uma religião para o povo brasileiro – como de fato
aconteceu.
Há
mais detalhes interessantes na história, mas aqui nos basta este ensinamento. O
espiritismo branco, europeu, de um saber quase acadêmico não fala boa parte da
população. Não é à toa que as linhas de umbanda refletem sempre populações
marginalizadas, agredidas e deslegitimadas: elas nasceram para falar a um povo
colonizado, pelas vias de uma saber que lhe é próprio, ainda que empurrado sob o
recalque da instrução iluminista europeia. Nasceram para falar àqueles em quem
nosso desgoverno não vê mais que vagabundos e bandidos.
“Não é à toa que
esquerda é esquerda na umbanda e na política.”
Aqui, a particularidade da esquerda, polarizando e trazendo à tona tudo aquilo
que ideais luminosos e solares lançam à sombra do inconsciente. O exu e a
pombagira vêm cheios de palavrões a quem fala ‘nádegas’ para não dizer ‘bunda’,
vêm dar uma bela gargalhada para aquele que quer a sobriedade de uma mesa
branca vazia. O malandro vem sambar num boteco de esquina com o executivo que
só tira seu terno para dormir (e olhe lá!), vem jogar capoeira com quem quer a
precisão do Tai-chi. Vimos com o Caboclo das Sete Encruzilhadas que vale para
toda a umbanda, mas particularmente a esquerda – na umbanda e na política –
empurra para cima aquilo que nós empurramos para baixo.
Ensinar
que na favela também tem Deus, ensinar a bruxa a rir do inquisidor. Ensinar a
mesa branca que ela é branca também na pele. Ensinar, não sem incômodo, que o
corpo sujo e maltrapilho na calçada não está lá por vagabundagem, mas por nós é
que o pusemos lá – isso se antes não tiver de mostrar que ele existe. Ser de
umbanda e ser de esquerda é fazer questão de levar ao nariz da elite o cheiro
deste corpo há dias sem banho, a fumaça da queimada na floresta, o sangue do
índio assassinado, a bala perdida do morro e o estupro homofóbico do viado. A
pombagira ri, a criança rola no chão, o caboclo dá seu brado – e eu não
deixarei de repetir: minha política não tem religião, mas minha religião é
política sim!
Pedro Henrique Mendonça
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