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O vírus da revolução?


Nota de 12 de outubro de 2020: é, parece não foi desta vez... =/

    
               
                  "Minha visão não é matar as pessoas per se, mas criar cosciência sobre o acesso à saúde pública!"


         

                               

Começo pela internet, porque é dela que parto. Retorno a dois chavões adiante. Antes de tudo, a radicalidade: o vírus da revolução. Quebra economias, rompe fronteiras e obriga a coletividade a se articular. É bem verdade que há outros níveis da coisa - quarentena é privilégio! - mas o que tenho de mais próprio a dizer, vem de outro lugar - otimista? Talvez. Mas não, não acredito que o vírus fará a revolução, até porque conhecemos bem a capacidade do capitalismo liberal de se aproveitar. Há mesmo o temor de reações autoritárias, para não dizer ditatoriais, nas políticas de contenção da chamada pandemia; há mesmo eventos estranhos, para se dizer o mínimo, em países afetados. Por outro lado, tenho sim um otimismo nisso tudo, porque vejo um fundo de verdade no caráter revolucionário do vírus.
De novo, não acho que ele trará a revolução, mas duas ideias que têm circulado me parecem promissoras: “não é sobre não pegar, é sobre não passar” e “defendam o SUS”. Ambas ressoam a consciência de uma responsabilidade coletiva vencendo o individualismo contemporâneo - como sabemos, para a maioria de nós, a virose (riam-se, se trata mesmo de uma virose) é mais fraca que uma gripe comum. Assim, as medidas de contenção que poderíamos dispensar em nosso egoísmo dispensável visam sempre o outro - respectivamente, não nos tornarmos vetores para as populações de risco, para quem o vírus pode ser fatal, e cuidar da possibilidade pública de cuidado para os infectados.
Pública! É a palavra chave, e não tem muito mais o que dizer. O vírus rompe fronteiras e classes. Neste quesito, é de fato revolucionário. Desde o início, escutamos especialistas dizendo que grandes quarentenas e fechamento de fronteiras não são efetivos - em primeiro lugar, por não serem factíveis. Pelo menos, não depois do século XX. O mundo globalizado mostra sua face mais terrível e mais promissora: não tem volta, o mundo está conectado e em trânsito. Terrível porque o trânsito sempre pode ser opressor, dominador, colonizador. Ainda assim, promissora (otimismo meu?) porque o trânsito já nos tornou inseparáveis. Ainda que haja o fantasma da aniquilação do outro (minúsculo), estará sempre em pauta o encontro, a diferença, a alteridadem a multiplicidade (para acalentar os pós-estruturalistas), isso tudo articulado numa possível coletividade (para acalentar os marxistas). Acalentando menos os marxistas (mas bastante a mim), uma coletividade que pode se ver como todo para além da homogeneidade de uma identidade - como pode ser a noção de classe, por exemplo. Trata-se de uma coletividade que se faz em articulação múltipla da diferença. Utopia minha, talvez…
Deixei-me levar numa digressão necessária para pensar este “pública!” - não uma totalização do Ser, mas uma possibilidade de acesso a todes na própria multiplicidade implacável que é todo coletivo. Trata-se da universalidade do SUS, que não diz respeito a uma homogeneidade do humano, por que se alia não à igualdade, mas à equidade. Cada um de nós contemplado ao seu modo, com suas condições e suas necessidades. Com essa noção de coletividade, podemos reiterar: a saúde tem de ser pública, não pode ser mercadoria, não só por ser direito, mas sobretudo porque a vida é pública e não reconhece fronteiras ou classes. E vejam só! Até Macron já concorda! Aí é que o vírus me parece promissor: denuncia o corpo orgânico que formamos sobre a Terra. E parece que denuncia até para os mais improváveis (até Macron já concorda!)
Falando em política mundial, ainda quero fazer um parênteses. Por algum motivo (alguns culpam o inverno), a pandemia atingiu primeiro o hemisfério norte - este que sempre nos fez de gato e sapato. De repente, vemos o México recusando estadunidenses e a África reusando europeus. O mundo dá voltas, não é?!
Enfim, digressões à parte, estamos aqui, cada vez mais conscientes do desastre que pode resultar de deixar certos bens nas mãos do livre mercado. Esta consciência não pode morrer!
Sabe o que mais não pode morrer? O altruísmo que temos visto surgir. Altruísmo pode ser uma categoria fraca, eu sei. Fiquemos então com a consciência coletiva, ética, cuidar do outro. É triste ver as prateleiras vazias nos mercados, denunciando os clientes autocentrados. Mas temos visto também estratégias de isolamento físico (físico, não social, porque desde a internet que não estão mais implicados um no outro) bastante conscientes da alteridade. Aliás, vale dizer que o próprio isolamento é implica esta consciência, se lembrarmos que “não é sobre não pegar, é sobre não passar”. Para além da macropolítica envolvida na noção de coletividade enquanto “pública” - defendam o SUS! - há uma dimensão mais básica, micropolítica, que tem emergido, uma consciência do coletivo em cada contato um a um, em cada cumprimento sem toque, em cada lavagem das mãos. Não posso deixar de citar o quanto me esquentou o coração a carta aos vizinhos encontrada em algum condomínio por aí (imagem acima), e já reproduzida em tantos outros.
Isso tudo não pode morrer. Se deixarmos acontecer, como no capitalismo em geral, toda a potência desta experiência morrerá, e toda a bagunça que se tem feito será sugada para dentro do mercado liberal, em nome do lucro dos grandes. Definitivamente, a bagunça não é agradável, mas a estabilidade a que estávamos sujeitos muito menos o era, ainda que tenhamos nos acostumado a ela. Então, que a bagunça sirva à mudança, porque rearticulação e reconstrução implicam, antes de tudo, desarticulação e desconstrução. Então, que tudo isso possa ser lembrado e revivido quando o vírus tiver ido. Para não esquecer, para não deixar morrer, teremos que falar muito sobre isso. Foi assim que decidi escrever. Não é um texto teórico e complicado e talvez não traga novidade para muita gente, mas, depois deste tempo afastado, em meio a um ano tão conturbado, nada mais justo que retornar com um assunto que está em pauta - e com alguma esperança, algum projeto de futuro. Não, não para o curso da história, esta coisa tão maior que nós, mas para alguma linha de fuga, talvez. Então, com medo de se fechar uma porta estreita, mas potente, escrevo simplesmente para falarmos sobre isso, para não deixar que voltemos ao mesmo lugar, para não deixar que este embrião de consciência coletiva e cuidado pereça nos tempos pós-pandêmicos.

Pedro H. Mendonça

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