Ler Deleuze e Guattari flui... e corta. Digo, a escritura esquizoanalítica é, ela mesma, máquina desejante, com
seus fluxos e cortes. É a brutalidade crua do Real – nada mais justo! Eles
terminam o primeiro parágrafo dO Anti-édipo com uma bomba, “algo se produz:
efeitos de máquina e não metáforas”. A brutalidade crua do Real. O que leio é
que a metáfora é a posteriori demais
(e, de fato, não há como negar). Parece que escapa, no entanto, aquilo que
sempre nos escapa: precisamente, o Real. Antes que se deduza de mim um suspiro
desesperado de um Lacan moribundo desacatado pela máquina desejante, digo que
não precisamos chama-lo Real. Heidegger, que aplainou o terreno para isso que
chamamos pós-estruturalismo, já nos avisava: a linguagem não dá conta do
incomensurável do mundo, logo, a essência da linguagem não é analítica, mas
poética.
Não quer dizer que a poesia venha
antes, no entanto. A bem da verdade, não sou capaz de separar, nos seus níveis
mais próprios, as ideias de Real, de negatividade originária e de pura diferença. Com o porém de que esta
última fala de uma pretensa positividade. Mas a própria positivação do mundo
não se dá em articulação de sentido? Desde Lévi-Strauss (no estruturalismo que
Deleuze e seus amigos estão evidentemente radicalizando)... a bem da verdade,
desde Saussure, entendemos que significação só se produz quando signos se
operam em contraposições estruturais, antes disso, nada são. É por isso que
Lacan precisa da primazia do significante, e Deleuze, da diferença radical (até o simulacro
tem a ver com isso): é preciso deixar de entender o signo como signo, já que a
significação só se faz a posteriori.
Mas quem vive a pura diferença? Quem sente na pele a aridez do Real? A pura
diferença radicaliza a arbitrariedade do signo, nos lembra que ele não é signo
(porque não significa) a priori,
transforma identidade em seriação, mas se esquece de tudo isso quando se propõe
uma pretensa positividade: ora, o que experienciamos antes da significação se,
sem ela, só há o não-senso?
A escritura deleuziana-guattariana
flui e corta na brutalidade crua da máquina desejante, e está em plena
coerência com seu projeto: efeitos de máquina e não metáforas. O modo de fluir
do texto de Deleuze é a frieza e a aridez de seu compromisso com o desejo. Se
leio que a metáfora é a posteriori,
imagino que se deduza que também leio que a
priori só há máquina (ou, só há pura diferença, operada e produzida/produzindo
enquanto máquina). É o que leio, e não posso discordar. Aliás, Freud, apesar
dos pesares, também não: antes de tudo era o Isso (dirão os esquizos: “mas que erro
ter dito o isso”). A origem é a pura
diferença, é a máquina desejante, é a brutalidade crua do Real. Mas ele se
esquece que a origem é também origem perdida – e, de novo, não precisamos de
Lacan, pois Derrida nos ensina sobre origens
e rastros, Heidegger, sobre negatividade originária. É perdida no
próprio estruturalismo que se pretende radicalizar (remeto à questão do
não-senso). E mais, com tudo isso, a máquina também grita que, por mais
originária que seja, também é máquina, produção.
É
fato que a brutalidade crua da escritura dO Anti-édipo tem sua razão de ser: ela
choca. Efeitos de máquina e não metáforas.
Ela nos remete à brutalidade crua do Real e joga na roda sua literalização mais
áspera. O problema é que não há literalização possível para a pura diferença:
toda linguagem traz consigo a arrogante pretensão conceitual de identidade – e
nunca consegue, por isso que Heidegger nos ensina poesia. A recusa deleuziana
da metáfora é necessária para apontar que no princício era a máquina, era isso,
mas a linguagem não escapa à metáfora, já que a significação primeira já é por
si mesma não-literal.
Como,
então, tecer uma escritura (e um modo de vida, diga-se de passagem)
compromissada com o Real, sem nos perdermos nessa pretensa literalização
inoperável? James Hillman nos ensina a repudiar a literalidade, mas não é desta aqui
que trata. O que preocupa Hillman é a literalidade da imagem, o entendimento
estabilizado do mundo enquanto Gestalt fechada. Em outras palavras, o
pós-junguiano, junto de Deleuze, teme que nos deixemos levar pela identidade,
pelos domínios de uma consciência apolínea, simétrica, racional, estável – e farsante!
Sim, porque o que vem antes é a diferença, por isso seu politeísmo. A
literalidade que Hillman teme, portanto, nos remete ao Imaginário, não ao Real.
Talvez ele já saiba que do Real não adianta falar.
Sua
solução, no entanto, interessa: metaforizar. Em termos lacanianos (e um pouco
mais compromissados com o corpo conceitual da linguística), diríamos:
simbolizar. Mais adiante nO Anti-édipo, Deleuze e Guattari nos apontam que
damos atenção demais à oposição S – I, e nos esquecemos que a oposição
fundamental é R – S+I. Leio: máquina desejante, pura diferença, contrapostas à
estrutura. Tenho a impressão de que, de fato, Simbólico e Imaginário remetem à
estrutura, porque a oposição que está em jogo em R – S+I é a oposição (não
necessariamente antagônica) entre não-senso e sentido. E é na estrutura que se produz
sentido. A diferença fundamental entre os dois registros diz mais de uma
postura, do que se pretende fazer com o sentido. O Imaginário literaliza
(Hillman), fecha a Gestalt, estabiliza o mundo num modelo analítico de verdade.
O Simbólico metaforiza, ele se opera na pergunta, e mais abre do que responde.
O Simbólico denuncia o inexorável da linguagem, da significação, sem pretender
fechar o mundo a toda desestabilização que daí provém. Nisto é que não podemos
abandonar Hillman: diferente de tantos junguianos, os hillmanianos não leem o
mito como resposta, mas como pergunta. Se digo Hermes, não falo de um modelo explicativo para as polaridades e a
comunicação. Hermes para mim é a própria pergunta pela contradição e pela
linguagem. O Imaginal de Hillman é muito mais Simbólico que Imaginário.
Neste
sentido, quando D&G dizem “efeitos de máquina e não metáforas”, parecem ler o
Simbólico e a metáfora como meros enfeites mentirosos para a brutalidade crua do
Real. Mentirosos porque, parece, neles está a identidade. Só posso imaginar que
o que sustenta sua posição é ver a conceitualidade e a identidade como única
possibilidade de linguagem¹. Eles parecem ver em toda e qualquer linguagem o
“cosmismo tranquilizador” que Lacan supôs em Lévi-Strauss. Aqui nos remetemos
novamente a Heidegger e à poética: a essência da linguagem não está na
representação do mundo (ambição da linguagem cotidiana), mas na própria
impossibilidade – e portanto, criação, poiesis – de representação do incomensurável (poesia). Mas é preciso
responder à esquizo que a linguagem cotidiana, a conceitualidade – elas não são
o Simbólico (pelo contrário, estão bem mais perto do Imaginário).
Estou
propondo, portanto, que não há linguagem, por mais bruta e literal que seja,
não há linguagem para o impossível da experiência, o caráter perdido da origem
(seja o lacaniano ou o derridiano), a aridez da pura diferença, o desejo
maquinal. É preciso lembrar que estão sempre na negativa (e aqui é o único
ponto em que me oponho frontalmente, e não subversivamente, a Deleuze e sua
pretensão de positividade). É possível, porém, uma linguagem compromissada com
o seu próprio caráter insuficiente, linguagem que rompa com a farsa da
comunicação cotidiana. Talvez a crueza da escritura esquizoanalítica faça
justamente isso, justamente linguagem
poética (apesar de que, para ler assim, teríamos que ignorar as pretensões de
positividade de Deleuze). Contra a imaginarização da linguagem cotidiana, o
imaginal hillmaniano, o mito como pergunta, estes denunciam a negatividade.
Hillman, junguiano que é, o fez com o mito. É preciso fazê-lo em toda fala, em
toda escritura e até, eu diria, em toda corporeidade. É preciso transformar a
linguagem farsante em poesia: é preciso metaforizar, é preciso simbolizar.
¹Importante
dizer que, para mim mesmo, esta parece ser uma leitura parcial de Deleuze (e de
Guattari, mas especialmente de Deleuze).
PH Mendonça
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