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Dois modelos para pensar decolonialidade e diferença

 

Quem cala sobre o teu corpo

Consente na tua morte

Talhada a ferro e fogo

Nas profundezas do corte

Que a bala riscou no peito

Quem cala morre contigo

Menino - Milton Nascimento


E aquilo que neste momento se revelará aos povos

Surpreenderá a todos não por ser exótico

Mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto

Quando terá sido o óbvio

Um Índio - Caetano Veloso


Começo a escrever ecoando o que há algumas semanas tem me saltado aos olhos cada vez mais: a incapacidade da esquerda - ou das lutas de resistência, quais sejam - de se aliar frente a um mal comum. Mas não me detenho nisso, apenas aponto o que me leva a escrever. Aqui vou mais na esteira de tentar definir o que é isto que penso e faço, talvez mais bem nomeável por um nomadismo e uma decolonialidade do que pelo título genérico e grandioso ~esquerda~... ao menos no que se pretenda restringir o título àquela tradicional tomada de posição na luta de classes que se pretende universal. Acontece que, quando saímos do âmbito europeu, se evidencia que a própria dinâmica das classes se insere no âmbito maior de uma colonialidade que produz incessantemente um mesmo identitário e um outro excluído (recalcado ou foracluído?), produz incessantemente, para pensar com Paulo Freire, um menos-ser (contraposto a um centro que pretende “ser completamente”), em lugar de um critério intensivo de mais-ser. O problema não está unicamente na concretude das violências físicas e genocídios, está antes na violência simbólica de um epistemicídio que fundamenta e de uma demanda de que o oprimido seja-mais (mais parecido com o opressor), por mais que se fechem as portas. Mas calma, vamos devagar. Este é o ponto em que quero chegar, não de onde quero partir. 


Totem e tabu e parricídio na morte de Deus


Parto, na verdade, de onde nasce isso que culminou numa pós-modernidade e num pós-estruturalismo: Deus está morto. Não preciso avisar ninguém que Nietzsche não estava falando de religião, né? Aliás, dá muito bem pra falar de Deus depois do acontecimento anunciado por Nietzsche, justamente porque se trata de um certo modo de compreender o mundo mais bem representado pela compreensão cristã de Deus - mas que pode não ter nada a ver com outros modos de compreensão do divino, tal como a lógica do Deus cristão não se restringe à religião. Dissolvendo o símbolo: o pensamento que se guia por princípios transcendentais, externos ao mundo tal como ele se apresenta, eternos e estáveis, estabilizadores do devir mundano… o pensamento orientado por tais princípios está morto. Digamos, então, que o que morreu foi o pensamento fálico, lógico (ao modo aristotélico), fixo, categorial, neurótico, metafísico. E não nos resta o outro lado, porque o par Deus-homem¹ não se torna simplesmente -homem depois da morte de Deus. Sem Deus, não há fundamento para o homem. Sem transcendência metafísica, não basta ficar com a imanência, ela terá de ser revista.

Com Freud, eu diria que a morte de Deus é um parricídio. E não estou falando de uma psicanálise de botequim papai-mamãe, estou falando especificamente de Totem e tabu. Lembremos: de um lado, um Pai de todos que domina todos os gozos - e portanto, todos saberes, prazeres e poderes, tudo acontece ao seu modo -; do outro lado, uma legião de filhos que só encontram a possibilidade de efetivamente matar o pai ao por um totem no lugar, ao invés de outro homem - isto é, quando encontram a possibilidade de transformá-lo num lugar simbólico. A Europa, até a modernidade, funcionou sob a lógica deste Pai totalitário, dominador, literalizado, Imaginário. Não é à toa que aparece a necessidade de uma psicanálise para um sofrimento neurótico entre os fins do século XIX e inícios do século XX, justo quando algo de novo começa a pulsar e não mais se sustenta a metafísica identitária. Aí o inconsciente começa a bater na porta deste supereu cristão e/ou moderno.

O problema é que, ao matar o pai e trocá-lo pelo totem, há uma diferença muito grande entre realmente abolir a possibilidade de que alguém ocupe esse lugar e sonhar com o dia em que o alguém verdadeiro aparecerá para tanto, já que não era aquele. Deus morreu, mas Nietzsche aponta que restam suas sombras, que muitos ainda adoram, como às sombras de Buda em suas cavernas. Ou seja, matamos o Pai e dissemos, a princípio: não há quem saiba, possa e goze do Todo. Mas só a princípio, porque passamos a modernidade buscando novos modos de ter certezas, garantias, estabilidades… ainda buscamos desesperadamente alguém que saiba, possa e goze do Todo. Dizemos de um sujeito suposto saber, mas reiteradamente o supomos em algum lugar, ainda que inalcançável. 

É justamente este o problema da neurose: castrado? Sim, é um sujeito barrado [$], com um Outro [Ⱥ] também barrado. Só que a neurose está justamente em não saber resolver bem a castração. Ou melhor, em querer resolvê-la. Por mais bem analisado, por mais capaz de sustentar a angústia, quando a coisa aperta, o neurótico volta ao seu Outro absoluto, perde sua capacidade de jogar com significantes de um Outro castrado [S(Ⱥ)] e procura outra vez alguém que lhe dê significados cabais e determinantes [s(A)]. Digo, na hora do vamos ver, o neurótico quer ser de novo o cogito cartesiano, quer ser de novo um ego determinado, fechado, acabado. O ego é a sombra de Deus. E digo ego porque não se trata de um eu como posição de enunciação na linguagem, mas realmente daquele ego que cogito ergo sum, penso logo sou (uma coisa pensante). Ego-coisa, moi, sujeitinho cartesiano retocado. O ego é o sonho Imaginário do neurótico ingênuo que busca a resposta para o problema da castração - e a busca num Pai Imaginário, dominador, dono da lei, dos saberes e dos gozos… ainda pior quando ele se encarna num governo.

Bom, e daí? Daí que continuamos buscando desesperadamente um Deus que resolva o problema da existência, um algo em algum lugar que organize tudo, que dê ordem ao devir do Real que se anuncia naquele rasgo deixado pela castração. Buscamos, em suma, princípios identitários, heranças paternas de um ideal de eu nunca alcançado, mas sempre reconfortante, porque estabilizador. E nossos ideais - ora, já viu Nietzsche que Deus produz hierarquias e valorações morais - nossos ideais, ainda que inalcançáveis, dão origem ao escalonamento de nossos modos de ser e de desejar entre aqueles que estão mais perto dos ideais e aqueles que estão mais distantes. Nossos ideais fundam um “jeito certo”. Se há em algum lugar transcendente, um princípio identitário do que é o homem¹, então há aqueles que são mais humanos e aqueles que são menos humanos. Retorno, portanto, com Paulo Freire: um oprimido que é-menos e um opressor que (embora também seja-menos, já que a opressão restringe e reifica tanto o opressor quanto o oprimido em seus modos de ser) pretende efetivamente ser. Foi também o que Simone de Beauvoir mostrou sobre o macho: nossa ideia de uma neutralidade essencial de “ser humano” vem no masculino, o ego cartesiano é um homem, e as mulheres, dentro desse s(c)istema serão sempre a borda. Não um fora, mas a borda. Serão-menos.


Modelo um: a bolha do mesmo




Assim, consigo finalmente chegar ao primeiro dos dois modelos que me parecem essenciais para pensar política e resistência hoje, especialmente em América Latina e África (talvez também no Oriente): essa espécie de bolha (sim, com suas paredes frágeis) que o pensamento metafísico identitário necessariamente produz, dentro da qual há uma repetição chatíssima de um mesmo, de um ser essencializado desesperadamente tentando se aproximar do Ideal. Nas bordas, por outro lado, todos aqueles e aquelas que são-menos, excluídos: ora por recalque, quando sua existência tem de ser rechaçada por ameaçarem a estabilidade do mesmo; ora por foraclusão, quando a própria definição do Ideal ignora (no seu duplo sentido) tal possibilidade Outra. 

Note-se que me referi sempre à borda, sempre à margem. Isso porque não há fora. A borda, o excluído fazem parte da própria constituição do discurso. Não há um além do discurso, há tão somente o impossível do Real marcado na própria linguagem, seja pela borda, seja pelo furo (eis as duas imagens dos dois modelos aqui presentes). Voltarei a essa marca quando passarmos ao segundo modelo, o da casa-vazia. Por ora, marquemos somente que a exclusão do diferente não o põe fora, mas marca a própria borda da identidade, da bolha do mesmo. Isso porque, como expliquei n’As duas lições do espelho², a diferença precede a identidade. Precedência que é justamente o que a metafísica identitária nos fez esquecer. Lá, disse que tendemos a pensar a diferença submetida a identidade (bananas são diferentes de maçãs porque bananas são bananas e maçãs são maçãs), mas que, antes de bananas serem bananas e maçãs serem maçãs, cada banana e cada maçã é diferente de tudo aquilo que não é ela. A partir daí, pretender uma primazia da identidade (e dos ideais, portanto), é tecer a sua borda com a própria divergência.


Ora, que lugar mais potente para desestabilizar a metafísica identitária do que esta borda? Olhar para e fazer ver o excluído é trazer à tona a inexistência desta linha Imaginária que delimita o mesmo, é resgatar a primazia da diferença, lembrando que a identidade nada mais é do que a estabilização aqui e ali dos devires da diferença. Em psicanálise, diríamos: identidade é identificação - põe sempre em jogo o outro (a-a’), portanto. Aí está uma das implicações de Beauvoir, por exemplo: a mulher como Outro do homem, ali da borda, de seu menos-ser, lhe contorna a existência e lhe dá as bases para seu pretenso ser efetivo. Graficamente, olhar para o excluído é pôr uma lupa sobre a borda e fazer ver que ela é frágil, toda esfuracada.

Isso tem ainda outra consequência, menos estrutural, mas importante de ser pensada: a bolha não é fixa. A linha divisória entre opressor e oprimido é móvel e se atualiza a cada vez, em cada relação. A mulher é o Outro do homem - a mulher branca, europeia. Mas frente a uma mulher negra, essa branca está dentro da bolha. Assim como um homem gay provavelmente estará dentro da bolha frente a essas mulheres, mas na sua borda frente ao homem hétero. Assim também, no que tange os modos de fazer esquerda, ou pelo menos os modos de resistir, o operário marxista pode ser borda numa Europa industrial, mas é bolha frente à bicha preta da favela. Ouso dizer que, no Brasil, não basta a revolução proletária. É necessária, sim, mas para desestabilizar a bolha do mesmo, a revolução tem de ser proletária, feminista (transfeminista, aliás), preta, etc. etc. 

Essa mobilidade da bolha também não é à toa. Nos subjetivamos em meio à sua própria estrutura. Por isso, além da evidente necessidade de uma interseccionalidade, não nos fixamos na borda ou do lado de dentro, pela própria constituição estrutural de cada um e cada uma de nós. Na multiplicidade do si-mesmo, haverá sempre pontos de resistência e pontos de conservadorismo. Assim, negar que haja um fora, por um lado, pode nos levar a pensar na própria borda. Por outro, pode nos levar à imagem que Hannah Arendt produz, a partir do deserto de Nietzsche: as resistências como oásis no deserto. São emergências do novo e da diferença no interior da própria secura da identidade e da mesmidade.


Modelo dois: a casa-vazia


Para pensar os oásis no interior da estrutura, passando de uma tópica da borda para uma tópica do furo, é preciso pensar que estrutura é essa, que é furada. Em qualquer estruturalismo, seja ele o clássico saussuriano e lévi-straussiano, seja ele um “pós”-estruturalismo, tal noção nos remete a elementos heterogêneos e vazios por si mesmos que, em suas relações diferenciais produzem sentido e significação (e portanto, modos de ser). Digamos, então, que estrutura quer dizer “articulação de elementos múltiplos que produz sentido”. A linha que se poderia traçar entre uma tradição anterior e um dito pós-estruturalismo está em que esta articulação seja tomada segundo uma universalidade lógico-matemática (ao melhor modo lévi-strussiano) ou radicalmente historicizada.

É curioso como Deleuze escreve seu artigo Em que se pode reconhecer o estruturalismo? de tal modo que reconhecemos, no que ele descreve, a maior parte do pensamento pós-estruturalista. Não é à toa. Não é difícil pensar que as pretensões universais de Lévi-Strauss ecoam ainda um ranço da ciência moderna europeia, por mais que a própria noção de estrutura desafie seus ideais. Mas, por este desafio, ao menos no modo como Deleuze o descreve, é que podemos e devemos pensar o pós-estruturalismo como um estruturalismo radical.

Por que me deter em tal diferenciação para este texto? Porque as pretensões universalizantes deste estruturalismo clássico ainda pensam uma espécie de ordenação do caos, enquanto que tomar na radicalidade a noção de estrutura significa romper com qualquer ideia de estrutura = ordem³. Quem pretende uma estrutura fixa e fechada é o perverso totalitário, o Pai que domina todos os saberes e gozos, em que tudo está acabado e definido, em que tudo é como é, na eternidade imutável de sua perversão. No fundo, estrutura - articução simbólica - é antes movimento do que ordem, porque é atravessada pelo Real da castração. Uma ideia de estrutura = ordem, enquanto sistema fechado e cabalmente determinado, está mais para uma totalização Imaginária do que para o movimento do Real que atravessa o Simbólico.

É neste atravessamento que está o oásis no deserto. A pretensão totalizante de toda a metafísica identitária da história europeia é mais operação Imaginária do Pai totalitário do que articulação simbólica de uma estrutura furada. No furo, um significante vazio: o totem, não mais um homem. O totem não se encarna, e se movimenta. Anda de mãos dadas com o que Deleuze, naquele artigo, chamou de casa-vazia, como um dos elementos fundamentais do estruturalismo. É a noção de valor num marxismo estrutural, é o mana na antropologia, sobretudo na conceituação Lévi-Straussiana, e é falo - ou melhor, o significante fálico - na psicanálise estrutural de Lacan. O que acontece é que, dado o desnível entre significante e significado, há sempre um resto de significado inapreensível (que Deleuze nomeia objeto = X, talvez o que nós nomeamos como objeto a ou, por outro lado, como mais-de-gozar). Assim, também sobra sempre um significante vazio. Lévi-Strauss chama mana de significante flutuante, eu gosto da ideia. Este significante que nunca se encarna, mas que articula toda a significação. Para Deleuze, palavra = X, ou palavra esotérica. Para nós, significante fálico, talvez por vezes S1.

Na medida em que se trata de um significante vazio, é nele que tudo pode se movimentar, e é por ele - como significante da castração, portanto articulador simbólico da impossibilidade do Real - que a estrutura, ao mesmo tempo, se articula e não se fixa. É através dele que o Real pode atravessar o simbólico. A imagem de Deleuze para a casa-vazia é mesmo como as casas de um jogo de tabuleiro. Pensemos num jogo de resta-um. É porque há uma casa vazia que o jogo se movimenta:



Não houvesse a casa vazia, ou fosse ela pretensamente preenchida, como na perversão do Pai totalitário, nada mais se moveria. A delimitação da bolha e suas consequentes exclusões, é a tentativa neurótica e identitária de “dar um jeito” na castração, encontrar o Pai totalitário - como certo eleitorado nos deu de favor - para entrar na casa-vazia, angustiante que ela é. Como já disse em outro texto³, o neurótico ingênuo é o complemento do perverso totalitário. Ele quer o perverso totalitário, porque sonha com aquele que tudo sabe, tudo pode e tudo goza, para lhe dar as respostas sobre esse buraco de sua estrutura que o angustia. 

Isso é o que a Europa e, mais tarde, os EUA fizeram de nós: neurose ingênua colonizada, batendo cabeça para os maravilhosos ideais do Centro do mundo. Mas somos periferia, somos a borda, somos diferença. Algo em nós, por mais que a colonialidade nos tenha submetido, algo em nós sobrevive para além da bolha. Se somos nós a borda excluída (note-se a semelhança do mapa com o esquema da bolha), também somos nós o oásis no deserto. Somos nós a diferença capaz de desestabilizar a pretensão identitária e a estabilização Imaginária do cistema capitalístico eurocêntrico. Somos nós, latinos e latinas, assim como os povos de África, cada luta com suas peculiaridades. Já num âmbito menor, do nosso país, são os povos originários, é a quebrada, é o povo de axé, são pretos e pretas, são as viadas e as travas. A revolução do proletariado pode ser, sim, necessária, mas não dá conta de todo o cistema colonial que vemos daqui do Trópico de Capricórnio. Daqui, dá pra ver que a classe é mais um elemento entre muitos que formam a bolha, entre muitos que pretendem estabilizar a estrutura de saberes, gozos e poderes. Então, teremos, sim, de ouvir Marx, mas também teremos de ouvir (e cantar para) Exu. Teremos de ouvir os quilombos e falar pajubá. Teremos, por que não?, que o ouvir o Jesus libertador de Gutiérrez, de Leonardo Boff. Teremos, enfim, de por em movimento esta carne, estas corpas, esta vida e fazer andar o acontecer transformador da multiplicidade.


¹ Escolho o substantivo generificado propositalmente.

² As duas lições do espelho: da identidade a valoração (https://entredois-phmendonca.blogspot.com/2018/07/as-duas-licoes-do-espelho-da-identidade.html)

³ Para repensar e relembrar este assunto, trago de volta o texto Perversão ou subversão: do totalitarismo à resistência (https://entredois-phmendonca.blogspot.com/2018/12/perversao-ou-subversao-do-totalitarismo.html)



Pedro H. Mendonça


A posteriori

            Na mitologia yorubá, quando Olorum designa Obatalá para criar o ser humano, impõe uma condição: para esta criação, não pode haver modelo. Feito o primeiro, Obatalá se orgulha de seu feito e passa a reproduzir os seguintes ao modo do primeiro. Ao sabê-lo, Olorum destrói a criação de Obatalá, que tem de começar outra vez: sem modelos! De fato, usar o termo “modelo” para descrever o que fiz aqui, talvez tenha sido uma escolha infeliz. Não, não só infeliz. Epistemologicamente incoerente. Modelo é o que está falaciosamente no meio da bolha. Modelo está lá antes, a priori, e determina o que o segue. Ao contrário, o que pretendia aqui era uma constatação, a posteriori, de uma regularidade. Não uma chave universal para entender quaisquer dinâmicas sociais, mas a denúncia de algo em comum entre tantas lutas. Uma raiz comum. Algo inventado na Europa-centro, e espalhado pelas suas ambições coloniais. Havia cá em mim a necessidade de escrever sobre essa regularidade, sobre isso que vejo em comum nas diversas opressões. Cada grupo ao seu modo, é claro, mas algo salta aos olhos. Devemos ao movimento negro, especialmente às feministas negras - e me lembro especialmente das Desobediências poéticas¹ de Grada Kilomba -, o reconhecimento da branquitude neste centro supostamente neutro, não racializado. Devemos especialmente a Simone de Beauvoir, reconhecer ali o macho, não generificado. Judith Butler nos mostrou ali a heterossexualidade compulsória, e nossa conterrânea viviane vergueiro¹ faz sua autoetnografia para denunciar também a cisgeneridade como normatividade. Isso para citar alguns - os mais falados - entre tantos temas. Há uma regularidade, mas que ela não seja pensada ao modo de um modelo anterior que a criação subsequente reproduz, como quis Obatalá. Não, ao contrário: o que chamo de modelo aqui é o próprio ímpeto de Obatalá para criar repetidamente o Mesmo. Se há uma regularidade, que nomeei - e nomeei mal, talvez - como modelo, ela não tem absolutamente nada de ontológica. Trata-se tão somente da Velha Europa, de novo e sempre, (des)inventando o Mesmo. O Mesmo patriarcal, cristão, logocêntrico, capitalista e colonial. O Mesmo, o Mesmo, o Mesmo.


¹ Butler e Beauvoir são suficientemente renomadas e reconhecidas. Quem quiser, encontra fácil seus textos. Mas não posso deixar de incentivar que se vá a Grada Kilomba (Desobediências poéticas - http://pinacoteca.org.br/wp-content/uploads/2019/07/AF06_gradakilomba_miolo_baixa.pdf) e a viviane vergueiro (Por inflexões decoloniais de corpos e identidades de gênero inconformes: uma análise autoetnográfica da cisgeneridade como normatividade - https://repositorio.ufba.br/ri/bitstream/ri/19685/1/VERGUEIRO%20Viviane%20-%20Por%20inflexoes%20decoloniais%20de%20corpos%20e%20identidades%20de%20genero%20inconformes.pdf).

Pedro H. Mendonça, 12/10/2020


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