Pedro H. Mendonça; Luís Eduardo Cobra Lacorte
Começo esclarecendo que este trabalho nasce de uma proposta atribuída a Linn da Quebrada, num debate sobre o filme Bixa Travesty. No entanto, é preciso que seja dito que nem eu, nem Luís estivemos presentes na ocasião. Então, mais do que debater diretamente com Linn, o que tentamos é uma construção teórica que dê forma aos ecos afetivos da proposta, que diz: eu não uso o amor como arma de luta, porque essa é a arma deles, uso a raiva. Na ocasião em que surge o relato desta fala de Linn, reconhecíamos a legitimidade do argumento, ao mesmo tempo que sentíamos certo estranhamento da proposta de excluir o amor de um projeto político, nos questionando ainda se este estranhamento era resquício de um discurso hegemônico em nós, ou se se tratava, antes, de um projeto de sociedade e de resistência ainda mal elaborado, anunciado como uma vaga sensação.
De início, esta denúncia aponta a moralização do amor como estratégia de manutenção tanto de certa obediência, quanto dos próprios pilares que sustentam nossa sociedade. Aqui, o conhecido dualismo metafísico, transcendentalista, e sobretudo moralizante, atua sobre amor e raiva: afetos imanentes se transformam em princípios transcendentes de bem e mal. Mas, para isso, é preciso que os afetos sejam antes substantivados, destituídos de seu caráter sempre verbal. Isto é, a princípio, não há amor e raiva, mas acontecimentos, um amar e um enraivecer. Só a posteriori, e já num sistema metafísico e identitário, estes verbos são transformados em estados de coisas (adjetivos) e, por fim, em coisas por si mesmas (substantivos): amar e enraivecer se tornam amor e raiva.
Mas há mais. A partir disso, os afetos, além de substantivados, são categorizados junto a certos comportamentos: argumenta-se que o amor seja bom porque implica cuidado (no sentido ôntico do termo), e que a raiva seja má por implicar agressão, destruição. Mas o que acontece aqui é uma sobreposição de diferentes planos ontológicos, quer dizer, afetos não equivalem necessariamente a este ou aquele comportamento. E aqui, entendemos afeto de modo bastante espinosista: poder de afetar e ser afetado. Em outras palavras, afeto é aquilo que acontece a um corpo por efeito de um encontro. Assim, ao nomear um afeto, tal como o amor ou a raiva, estamos nomeando uma modulação deste afetar e ser afetado.
Assim entendidos, afetos por si mesmos não podem ser assinalados como bons ou maus a priori, na medida em que são puros acontecimentos sobre os corpos que se encontram. No entanto, o pensamento da tradição eurocidental produziu justamente a articulação de um sistema metafísico que reduz afetos verbais a substantivos, a coisas já implicadas com certos comportamentos, forjando, assim, as condições para sua hierarquização em valores morais e moralizantes.
Falando enfim da moral, não podemos dizer que pretendemos efetivamente uma genealogia do amor, mas recorremos à própria genealogia nietzschiana da moral, reconhecendo como se abate sobre o amor. Já de início, Nietzsche demonstra filologicamente, semanticamente, como os ideais de “bem” nascem dos próprios termos que designam o nobre, o aristocrata. Assim, a oposição metafísica entre bem e mal decorre de uma ordem social e, perversamente, é utilizada como sua própria justificativa: o aristocrata define o “bom” por sua própria imagem e semelhança, o que tem como consequência o pareamento entre “escravo” e “mau”, e a partir daí o nobre rejeita o escravo para este lugar sub-humano. Embora Nietzsche aponte que esta suposta superioridade tem muito a ver com dominação, com uma espécie de superioridade bélica, com a noção de honra, quando a nobreza se associa com a Igreja, também o amor passa a ocupar este lugar. Afinal, “o amor é a arma deles” implica que o amor é deles. Aqui, lembremos de uma fala de Linn da Quebrada:
Acho que também não seja tanta coincidência que Deus seja amor, né? E amor é uma das principais ferramentas de manutenção desse sistema/cis-tema, né? É o amor que constrói as famílias, é o amor que distribui a herança. Nós, corpos trans, e até se a gente pensar em corpos pretos, sempre fomos distanciadas do amor. É como se o amor fosse a Terra Prometida, e nós tivéssemos sido expulsas do Jardim do Éden do amor. (QUEBRADA, 2019)
Fiquemos com este eco, ao qual logo retornaremos, percorrendo o caminho pelo outro lado. Numa lógica quase inversa, está o que Nietzsche chama moral dos escravos, que dialoga ainda mais explicitamente com a proposta original. Mesmo quando o amor chega ao oprimido, ou melhor, nasce entre os oprimidos, os escravos, é através de certa compaixão por e entre escravos, que, ainda que aplaque o sofrimento em alguma medida, não se atenta às condições do sofrimento, o que equivale a uma manutenção de tais condições. Cito Nietzsche:
Tenho a impressão de que mentem: uma doçura como mel se aglutina a cada som. A fraqueza deve ser, a golpes de mentira, transformada em mérito [...] a impotência que não usa de represálias em “bondade”; a baixeza temerosa em “humildade”; a submissão àqueles que odiamos em “obediência”. (Genealogia da Moral, afor. 14, p. 68)
Com estes dois lados, fica fácil compreender como é legítimo não usar o amor, porque é a arma deles. E note-se que em Nietzsche este “eles” se refere à aristocracia europeia. No discurso de Linn, “eles”, primeiro, somos nós: acadêmicos, de maioria branca, muitos de classe média. Mas, em termos globais, a relação senhor-escravo de Nietzsche se torna a relação Norte-Sul, e digo isso porque estamos falando de uma moral cristã europeia, no Brasil. Portanto, a “arma deles” é o amor que, primeiro, iguala o colonizador à bondade divina (e lembremos aqui da catequese dos índios ou dos absurdos discursos sobre a escravidão como um favor) e, depois, se transmite a nós como ideal de boa convivência, sim produzindo uma certa cooperação, mas mantendo a submissão, a obediência e, sobretudo, a hierarquia Norte-Sul. Afinal devemos amar inclusive nossos opressores - o amor é a arma deles.
Por outro lado, ainda com Nietzsche, é preciso ver que a opção pela raiva como negação do amor se mantém ainda no mesmo sistema de uma moral escrava, sob o insígnia do ressentimento. Em Nietzsche, a raiva, o ressentimento, dependem da relação de escravidão. Diz ele que “o escravo percebe de modo hostil as virtudes dos poderosos. Ele é cético e desconfia de tudo que é respeitado e considerado ‘bom’ pelos poderosos” (Para além do bem e do mal, afor. 260, p.162).
Se a moral dos senhores afirma o nobre como bom com fundamento num plano divino transcendente, a moral escrava afirma o senhor dominador como mau, referindo seu próprio “bem” na oposição ao mal do senhor. Assim, a raiva que se sente do senhor, tanto quanto a compaixão pelo bom escravo sofredor, se tornam critérios de bem por oposição ao senhor tomado como mau. E quando estes critérios estão fundados na própria condição de opressão, toda a moral daí decorrente será devedora e mantenedora da relação senhor-escravo.
Bom, com tudo isso, como inventar qualquer estratégia política que seja? Antes de tudo, dessubstantivando e resgatando à raiva e ao amor suas condições de afeto, de puro verbo. Daí, qualquer projeto pragmático que seja terá de ser assentado em outras bases éticas, não submetidas a essa moral metafísica. De alguma maneira, no seu empenho contra a metafísica, Nietzsche anuncia uma ética. Tal como a de Espinosa, uma ética de afirmação dos afetos. Alexandre Cabral, ao tratar do método genealógico, lembra que ele sempre se pergunta: “qual a qualidade dessas formas de vida: promovem ou não a vida?” (2018,
p. 32). Promover a vida significa possibilitar e favorecer uma multiplicidade de jogos de força que nos atravessam. É preciso propiciar e afirmar encontros entre corpos múltiplos. Isto implica nesta ética também a alteridade, a diferença, a multiplicidade, nos levando a um princípio que, ironicamente, muitos também nomearam como amor. Mas para isso é preciso entendê-lo como modo de relação com a radical alteridade, diferenciando estes dois significados do amor no senso comum: princípio ético ou modulação afetiva.
Para pensar neste projeto, vamos jogar um pouquinho com Heidegger, lembrando que, quando Binswanger o acusa de ter deixado o amor de lado, o filósofo responde que ele já está em jogo na noção de cura/cuidado (Sorge). Sabemos que, na medida em que o ser-aí não é a priori, tem de sempre cuidar do ser que está sendo. No entanto, o que aparece aqui é que, se é sempre já no-mundo, junto-aos-entes-intramundanos e com-os-outros, cuidar de si é inseparável de cuidar das coisas e dos outros. E lembremos que cuidar, aqui, não se refere a nenhum gesto ôntico, mas, antes, à própria abertura existencial. Se não há ser sem aí, cuidar do ser é também cuidar do aí. E se cuidado é abertura, sobretudo, o que nos interessa aqui é a abertura para o outro.
No entanto, essa abertura pode se dar… fechada. Isto é, o outro aparece como coisa, não como outro ex-sistente, no ser-com ao nível do impessoal. Mas, se o que é prezado aqui é a alteridade, o outro radicalmente e singularmente outro, para que ele possa emergir nesta condição, não basta que escape ao impessoal - lembremos que estamos falando de potencializar a multiplicidade! Ao tomar o outro como outro, ainda é preciso que ele não seja sobrepujado por uma opressão ou determinação externa que o impeça de ser seu mais próprio (negligência), e que também não seja impedido de exercer seu cuidado mais próprio por alguém que, ainda que querendo seu bem, cuide dele por ele (solicitude imprópria, cuidado substitutivo). Para radicalmente ser-com-os-outros em sua alteridade, é preciso que deixar que o outro emerja ele mesmo, de si mesmo e por si mesmo.
Dando mais um passo, para que a cada encontro com um outro ele possa aparecer na sua singularidade, é preciso que a alteridade seja sempre pensada como “outros”, no plural, de modo que não seja impedida por qualquer ideal de uma unidade coletiva: cada outro é um outro e, por isso mesmo, ser-com-os-outros é plural. Aqui, cito de novo Cabral, já jogando com o ser-com-os-outros de Heidegger e a pluralidade de Hannah Arendt:
a singularidade não atomiza a existência, mas afirma a multiplicidade de relações em meio às quais ela exerce suas possibilidades. Responder pela multiplicidade ou pelo plural - eis o que a singularidade realiza a cada vez. Se enfatizarmos a relação entre singularidade e alteridade humana, então é possível afirmar que o singular responde por outrem como outrem, isto é, como sendo ausência de propriedades substanciais, absolutamente refratário às categorias identitárias. (idem, ibid., p. 89)
Aqui, entram em jogo, simultaneamente, alteridade e pluralidade. O singular (que uso aqui quase como uma utopia) é aquele que não deixa nem coisificar, nem totalizar, nem moralizar. É aquele que subverte as substantivações e os ideais morais universais da tradição. E isso acontece neste jogo semântico singular/plural: o singular (só) é o seu mais próprio em meio a uma situação plural e num ser-com plural.
Assim, ao olhar para a nossa tradição, se pensarmos o amor cristão, até mesmo esta ideia de “amor universal”, sob a insígnia da alteridade e da pluralidade, se entendermos amar como possibilitar, afirmar e potencializar o ser mais próprio do outro - e de cada outro entre os outros - então é possível reabilitar o amor como princípio de luta. Amor como princípio ético em que cabem os múltiplos afetos: o afeto que por vezes também nomeamos como amor, mas também a raiva de Linn, também o medo, etc. etc., todos em sua multiplicidade tendo lugar. Até mesmo a compaixão, que Nietzsche tanto tripudiou, se a entendermos como co-pathos, como um deixar-se afetar pelo outro, terá seu lugar e sua importância.
Em meio a tudo isso, já que toda a questão gira em torno de subverter a moral cristã, vale aqui reconhecer esta subversão na Teologia da Libertação. Eu já sabia que haveria tempo para apronfundar aqui, o que é uma pena, mas preciso apontar que, ali, naquilo que é tão latinoamericano, Deus e o amor servem à transformação. Digamos que a Teologia da Libertação reabilita o amor ao sul do equador. Assim, nesta subversão da moral cristã, podemos encerrar com mais uma citação de Linn: “eu gosto muito da palavra Deus, Deus é uma palavra composta... D'eus, de todas aquelas que eu estou sendo e todas aquelas que eu ainda vou ser.” (QUEBRADA, 2019)
Então, se tornando a hegemonia cristã insustentável na contemporaneidade, e sobretudo em contextos periféricos, fica sempre em aberto um jogo que pergunta: de qual Deus estamos falando? De que amor estamos falando? De que Jesus estamos falando? Daqueles que legitimam a opressão ou daqueles que inventam justamente suas linhas de fuga? É sempre uma escolha a ser feita. Uma escolha entre uma oração eterniza a separação entre Pai-nosso e pão-nosso, afirmando e reforçando as opressões, ou, ao contrário, uma oração que os une naquilo que Leonardo Boff chamou de transparência do mundo e de Deus. Deixo vocês, então, com este apelo para que assistam (não só ouçam, mas assistam o clipe) de Oração, de Linn da Quebrada, porque esta é a oração que precisamos fazer.
CABRAL, Alexandre Marques. Psicologia pós-identitária: da resistência existencial à crítica das matrizes cristãs da psicologia clínica moderna. Rio de Janeiro: Via Verita, 2018.
NIETZSCHE, Friedrich [1997]. A genealogia da moral (GM). São Paulo: Escala, 2013.
________ [1886]. Para além do bem e do mal (BM). São Paulo: Centauro, 2006.
QUEBRADA, Linn da. Os feitiços e desejos de Linn da Quebrada. 2019. (11m34s). Reportagem: Tiago Dias. Imagens e edição: Mariah Kay. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=ExIrwc_HVtw>. Acesso em: 28 jul. 2020.
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