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Psicanálise pública e clínica privada: quem tem medo do divã na rua?


Pra começo de conversa, melhor seria dizer: quem tem medo da rua no divã? Afinal, o que mexe de fato nas coisas não é falar de papai e mamãe na praça pública, mas descobrir que papai e mamãe também fazem parte da praça pública. Mas chego lá. Quero começar de outro lugar. Pra gente que trabalha com psicanálise pública, a polêmica é sempre a mesma: $$. É até chato. Eu, que vim de umas experiências como AT, queria sempre falar dessas coisas que acontecem no espaço público, tipo uma criança passar rolando entre você e o analisando, ou alguém vir pedir uma esmola, ou um jovem muito bem vestido querer falar de Jesus. Mas não, quando se fala na dita “psicanálise no espaço público”, a primeira coisa que se fala é sempre: dinheiro. Quando não é a primeira, é a última, pois a discussão sempre leva a isso. E é também o dinheiro que encerra tudo: nada a discutir depois dele, e o pior, heróis e vilões do anticapitalismo muito bem delimitados.

É curioso, porque todo mundo tem heróis e vilões muito bem delimitados, mas ninguém concorda sobre eles. Em primeiro lugar, sabemos muito bem: o que se paga em análise não é a hora do analista. Do lado de cá do divã, digo que o que se paga é minha subjetividade - mas essa é outra discussão. Pra quem deita (e quando eu deito), o que pagamos é o desejo. Pegamos pelo nosso inconsciente: tanto em suas imagens e construções malucas, quanto pela pulsão que faz pulsar. Ok, mas quem paga? Como? Por experiência própria, tenho que concordar que, quando há resistência ao pagamento, geralmente já sinal de que não vai pra frente, e também é verdade que um manejo torto do dinheiro pode desandar a coisa toda. Sim, é inegável, e aprendi do pior jeito. Agora, é muito fácil dizer isso quando seu consultório em Higienópolis só recebe gente que mora em Perdizes ou na Paulista. É muito fácil quando seu trabalho social é com a classe média desconstruída que anda por Pinheiros. E não me levem a mal, não é nada pessoal, minha própria analista atende em Perdizes. (E eu aqui digo essas coisas ainda ignorando os efeitos da pandemia nisso tudo - risos.)

Muito bem, quem paga? Como? É só o dinheiro que paga uma análise? O que paga e põe o desejo em movimento quando as condições do real apertam a barriga e puxam nosso pé? Aliás, há análise com fome? Analista é só aquele que interpela o sintoma neurótico, ou o título vale também para quem toma outros lugares, encarna outros Outros, quando a dor da vulnerabilidade é a mais crua? Isso me faz lembrar de uma supervisão, quando nosso coletivo ainda era a Oficina Clínica de Psicanálise, em que uma colega traz angustiada um caso de violência doméstica, com ameaças gravíssimas, que ela acolheu maternalmente e cuidou, orientou a quem procurar, como se proteger: “será que não estou sendo analista?” Sim e não. Ora íamos dizendo que cuidar do Real faz parte da análise, ora íamos lembrando de Winnicott, que, pelo que apareceu ali, dizia algo como “quando dá, a gente faz psicanálise, quando não dá, a gente faz outra coisa”. Que seja, o que importa é que a atuação dessa nossa colega era necessária, e muito mais efetiva do que qualquer “como você se sente sobre isso?” - mas eu diria que tinha psicanálise ali, sim. Tinha escuta! E é disso que se trata: quando a psicanálise sai do Centro, vamos escutar coisas novas e vamos ter que responder coisas novas.

É disso que se trata: nenhuma interpretação pronta, nenhuma repetição de clichê. Nem toda falta vai ser resistência, nem toda criança que dorme com a mãe vai ser incesto, nem toda pechincha vai ser desinvestimento. Democratizar a psicanálise vai muito além de possibilidades financeiras de acesso. Democratizar a psicanálise implica democratizar a escuta. E o primeiro passo é reconhecer que nossa escuta é viciada.

Não é a rua que tem medo do divã, é o divã que tem medo da rua. São analistas brancos que acham besteira pessoas pretas quererem analistas pretos, afinal escuta é escuta, e o lugar do analista não tem nada a ver com raça. Analistas ateus e ateias que, em vez de deixar agir o efeito subjetivo de um ebó no candomblé, se preocupam com pensamento mágico e onipotência de pensamentos. E vamos concordar, também entra nessa quem acha que fazer psicanálise pública de graça uma vez na semana resolve cinco dias úteis lotados cobrando R$500 por sessão. Bom, a bem da verdade, resolve algo: a sua culpa. Mas nem tô aqui pra falar de culpa branca, até porque eu também me enredo nela aqui e acolá.

Nisso também entra o dinheiro, porque há quem defenda que pra fazer psicanálise pública, pra ser resistência de verdade, pra enfrentar o capitalismo de verdade, não se pode cobrar nada. Na nossa Escuta Pública de Psicanálise, o plantão é gratuito, mas todo mundo pode pedir pra negociar um valor pra ir pro consultório, toda semana, deitar no divã com horário fixo. Lembro que ainda nos tempos da Oficina, se falava da surpresa de alguns: “sério? Mas eu não tenho dinheiro, eu posso mesmo ir no seu consultório?!” E exercitemos nossa escuta: “não tenho dinheiro” não quer dizer “não posso pagar pelo seu consultório”, mas sim “eu não pertenço a esse mundo aí” - afinal, são pacientes pagam, ainda que pouco. E não se entenda isso como um assimilacionismo, uma inclusão ingênua que alimenta o capital. Tem muita coisa em jogo aí. Aliás, muita coisa que um plantão gratuito finge que não vê. Digo isso porque tem quem diga que deve ser gratuito para estar “fora” do capital! Pergunto: que fora é esse? Vale mais atender de graça uma vez na semana ou repensar toda a estrutura do que é a clínica, com seus mecanismos de exclusão e suas re-invenções factíveis? Pra onde vai a semana de consultório numa torre chique de Pinheiros? Desaparece só porque agora você tá, uma vezinha por semana, na praça pública escutando quem tá na pior? E essa diferença não tá em jogo lá não? Cadê o analista branco riquinho quando tá com o preto pobre que dorme na rua?

“Ah, porque a foraclusão do eu do analista…” Não, ninguém foraclui a sua pele, nem muito menos a inscrição Real do capitalismo, do racismo e do patriarcado. Muito pelo contrário, é preciso foracluir o eu do analista para a gente poder olhar pra essas coisas. Porque precisa estar muito bem com o próprio narcisismo pra continuar sendo analista quando um paciente se revolta porque você tá sendo branco e dizendo coisa de branco. Ou quando uma pessoa trans, que já tá ali compulsoriamente, não quer ser escutada por uma pessoa cis. Agora imagina só: se quando o divã vai pra rua é um desafio, quando a rua entra e deita no divã, como é que fica? Porque quando alguém sai do plantão e se enreda numa análise de consultório, pode muito bem acontecer de o porteiro não deixar subir se for uma pessoa preta mal-vestida. E aí? Como é que a gente trabalha isso em análise? Inventando dispositivos supostamente isentos? Neutros? 

Democratizar a psicanálise vai muito além do dinheiro. Eu disse lá em cima: o que o paciente me paga é minha subjetividade. Pois é, isso significa que, se democratizar a psicanálise é democratizar a escuta, isso também quer dizer democratizar a minha subjetividade. Quem tem medo da rua no divã? não é uma brincadeirinha, não. A pergunta é: quem tem carão de ver que, não importa o quanto se queira escapar do sistema (seja pra uma neutralidade besta da tradição, seja pra querer enfrentar o sistema), ele está ali? Mais que isso, quem tem carão de ver que o divã não é só suposto saber, nem encenação de Édipo, nem nenhum outro clichê, que o divã é a política ali, acontecendo a dois? E quem tem carão de fazer disso material de análise? Porque aí sim, pra isso precisa muita foraclusão do eu: não só dos ideais da própria vida, mas dos próprios ideais do que é ser analista. Vai ser preciso dizer: “acho que isso aí tá muito distante de mim, não tô conseguindo escutar”, e até se dar conta de que "Fulano é porteiro, tá sofrendo na mão de burguês safado de condomínio… eita, lá onde eu moro eu tô do lado do burguês safado”. Só assim isso pode virar material de análise, os nossos privilégios, a nossa pele e as nossas marcas, as nossas gírias, o simples fato de exercer a psicanálise… tudo isso vai estar em jogo. E tem que estar em jogo atendendo rico tanto quanto pobre, porque nossa neurose coletiva aqui no Brasil não se resolve falando só da histeria de Viena, não. Tudo isso tem que estar em jogo, se não, não haverá psicanálise - nem pública, nem democrática, nem descolonizada, nem sequer brasileira, porque será mais uma vez: branco brasileiro querendo ser europeu.


Pedro H. Mendonça 

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