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Não sou homem nem mulher (e nem você!)


Começo de um título arriscado - e arriscado a começar de quem fala. Sim, porque quem fala não foge de uma ambiguidade inevitável dos semblantes. Mas também porque negar o semblante também pode ser um risco. Além de falso - já que o semblante é sempre uma meia-verdade - dizer que o que se performa é só uma fachada nos põe a um passo de dizer que não importa. E sim, homens e mulheres, ser homem ou ser mulher, ou outra coisa - tudo isso importa muito. Num ingênuo "não há homens e mulheres", é preciso não esquecer que a meia-verdade do semblante se materializa, e qualquer que seja este homem-mulher que não há, violências muito concretas operam a partir dele.

Apesar dos riscos, insisto no título, especialmente no “e nem você!” porque não se trata propriamente dos semblantes. Bem sabemos que os semblantes (homem/mulher), as modalidades de gozo (fálico/Outro) e as respectivas fantasias (relação com o objeto) em nada se prendem uns aos outros. Ou, com Butler: a coerência sexo-gênero-desejo-prática sexual se produz em discurso histórico. A bem da verdade, podemos ler Lacan e Butler em plena concordância ou em plena discordância - mas não vou argumentar sobre isso, porque a ideia não é escolher categoricamente entre concordância ou discordância.

Antes de chegar lá: dizer que tal coerência se produz em discurso histórico é dizer que ela não é condição necessária e a priori das identidades de gênero. Por outro lado, que há fora do discurso? Quer dizer, se o discurso histórico produz os conceitos de homem e mulher sob esta exigência, então a própria definição de homem e mulher (os semblantes?) abarca esta coerência. É aí que está a confusão: os semblantes? À primeira vista, parece haver uma certa correspondência de alguns dos itens listados. É evidente a equivalência entre o desejo (que, em Butler, se refere à escolha objetal) e as fantasias - nada mais a dizer.

O gozo complica um pouco. Ora poderia ir com o sexo, a anatomia, o produzir-se de um corpo sob certas condições discursivas¹ (e que é o gozo senão o conceito que articula a materialidade dos corpos e a linguagem?); ora poderia ir com a prática sexual, mais especificamente as posições (subjetivas e literais) no ato sexual. Mas não é bem sobre o gozo que vou me ater aqui - apesar do fato de a distinção entre o fálico e o não-todo ter muito a ver (de maneira bastante negligenciada) com os conceitos históricos de masculino e feminino.

Deixei por último outra correspondência que parece óbvia, porque neste parecer é que está o problema: semblante e gênero. O que Butler nomeia aqui como gênero? Certamente uma pergunta para muitos debates. Vou escolher um caminho (que me serve para falar do semblante), e provavelmente errarei. A dúvida que coloco, mais especificamente, é uma alternativa: “gênero” se refere ao conceito histórico de homem e mulher ou à apresentação singular de cada uma nós enquanto homem, mulher ou outra coisa? Se optarmos pela segunda, então gênero é semblante e trato feito. (Feito mais ou menos, porque a dúvida se Lacan e Butler concordam ou discordam sobre a relação necessária entre os termos permanece… mas eu disse que não ia responder essa dúvida.)

Só que acho que escolher pela segunda é uma má leitura. O que chamei (evitando o termo conciso para usá-lo agora) de “apresentação singular de cada uma de nós enquanto homem, mulher ou outra coisa” não é justamente o que resumimos como “identidade de gênero”? E não aparecem em Butler os quatro termos (sexo-gênero-desejo-prática sexual) justamente para conceituar identidade de gênero como a articulação dos quatro (não necessariamente coerente, não necessariamente inteligível)? E mais: se identidade de gênero é a articulação dos quatro termos, que faz o gênero ali no meio? Bom, evidentemente não é a apresentação singular de cada um (afinal, isso é a própria identidade de gênero). Logo, opto pela primeira: gênero ali no meio se refere aos discursos históricos sobre masculinidade e feminilidade. Só que isso complica as coisas, porque este termo não aparece nas tábuas de Lacan.

Então estamos bem com o desejo (de Butler) e a fantasia, e um pouco menos bem com o gozo, o sexo e a prática sexual. Mas definitivamente estamos mal com o gênero e o semblante. Parece que o que equivale ao semblante é a identidade de gênero, não o gênero enquanto discurso. E aí está a bagunça: em Lacan, isso é só mais um elemento; em Butler, isso é a articulação de todos os outros.

A bagunça aumenta com uma citação de Lacan que vou fazer questão de reproduzir na íntegra. Mas antes vou lembrar que, se o gozo fálico está dado como masculino e o gozo Outro está dado como feminino, a mulher não deixa de ter acesso ao primeiro (afinal, também é neurótica, também se subjetiva em torno de um significante vazio - falo - que sobra quando descobrimos que o pênis não faz suas vezes). Ninguém costuma lembrar que, se os andares das tábuas da sexuação são independentes, então o homem também tem acesso ao gozo Outro. Bom, Lacan lembrou:

(...) não se é forçado, quando se é macho, de se colocar do lado do xx. Pode-se também colocar-se do lado do não-todo. Há homens que lá estão tanto quanto as mulheres. Isso acontece. E que, ao mesmo tempo, se sentem lá muito bem. Apesar, não digo de seu Falo, apesar daquilo que os atrapalha quanto a isso, eles entreveem, eles experimentam a ideia de que deve haver um gozo que esteja mais além.” (Seminário XX, 20 de fevereiro de 1973, parte 3)

Disse que fazia questão de citar na íntegra por causa do “aquilo que os atrapalha quanto a isso”. Acho engraçada (e politicamente necessária) a ideia de que o problema do homem cis-hétero (para si e para elas) é que seu órgão historicamente carregou o falo. Mas voltemos ao que interessa neste texto: “há homens que estão lá tanto quanto as mulheres” era o que citaria se não citasse na íntegra. É fácil entender a asserção sabendo que o semblante e as modalidades de gozo não têm relação necessária. Por outro lado, algo pode se confundir se pensarmos em homem e mulher como discurso histórico.

Porque esse é o problema da equação entre Butler e Lacan: porque se o elemento gênero diz “homem-mulher” e o elemento semblante diz “homem-mulher”, é muito fácil equipará-los. Mas, pelo que vimos, teremos de separar as coisas. Então vou tentar ler Lacan assim: quando homem (semblante) goza do gozo Outro, ele não está sendo completamente homem (discurso histórico); quando a mulher (semblante) goza do gozo fálico, ela não está sendo completamente mulher (discurso histórico). E ele e ela podem gozar assim porque a coerência entre os termos não está dada a priori (nisso, certamente, Lacan e Butler estão de acordo). Agora,  tenho consciência de que esta leitura já é uma leitura bastante butleriana de Lacan. Tentarei fazer ainda mais:

Vou tentar melhorar a confusão dizendo que o semblante-homem ser independente dos outros termos significa que ele não é necessariamente o homem do conceito histórico (pelo menos não por inteiro), porque o conceito histórico, esse sim, pede a coerência entre os termos. O mesmo vale para as mulheres. Falando na historicidade da coisa, na contemporaneidade, talvez a proposta de Lacan se torne cada vez mais presente: o discurso histórico muda, ainda que lentamente, e cada vez mais os homens podem ser não-todos, não-fálicos e não-héteros, assim como as mulheres podem ser cada vez mais fálicas e não-héteras²… Bem, e não é que se inventaram novos semblantes?

Voltando mais uma vez ao tema (prometo que agora me atenho a ele), reformulo a ideia outra vez: se o homem (semblante) reivindica para si tal categoria, é porque ele se pretende homem (discurso histórico) e, portanto, se pretende coerente. Se a mulher (semblante) reivindica para si tal categoria, é porque ela se pretende mulher (discurso histórico) e, portanto, se pretende coerente. Assim (última reformulação): o semblante é uma pretensão. O que não é uma conclusão muito surpreendente, já que estamos falando de semblante, não uma cara dada a priori na carne e no osso. Com Butler encontramos que o gênero é performativo; com essa miscelânia de Lacan e Butler que fiz, o semblante é uma pretensão. Ao menos, vinha sendo até as últimas décadas. Finalmente justifico a insistência neste título ardido: não sou homem nem mulher (e nem você) porque o discurso histórico os conceitua perante certa estabilização coerente dos termos de que tratamos aqui - e esta estabilização nunca acontece pra valer. Isso não quer dizer que ele não possa nomear-se como homem e ela como mulher (e ile como outra coisa). Quer dizer unicamente que esta nomeação trata de uma pretensão (à qual diz respeito a própria noção de semblante, então… sem problemas… será?). E até mais além: mesmo frente à escancarada incoerência e ininteligibilidade dos termos em questão, ainda assim nada impede o sujeito se nomeie homem ou mulher. Trata-se de subversão. Trata-se da reinvenção cotidiana da linguagem. Por que não?


¹ Não vou me estender aqui sobre a precedência do discurso sobre a anatomia, Butler e Preciado já o fizeram o suficiente. Sexo também é gênero.

² Sobre parte das mulheres, certamente é uma conquista em termos das liberdades individuais, mas elas passarem para o lado fálico da coisa não me parece o melhor caminho para a história. Afinal, o problema do homem é que ele goze do/com o fálico… Melhor formulando, o problema do patriarcado é o falogocentrismo que produz mesmidades e exclusões. Parece-me que trazer os homens para o lado do não-todo é um caminho mais promissor, fazer inseri-los na multiplicidade do gozo Outro que não se totaliza. Enfim, isto também é assunto para outro momento maior que uma nota de rodapé.



Pedro H. Mendonça

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