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Internet: entre o tempo e a fala (uma pequena abertura)

Não seria surpresa que viesse escrever sobre o encurtamento das distâncias, sobre a velocidade do mundo, sobre a circulação de informação, sobre as relações superficiais... tudo isso já é assunto trivial. Quem, das últimas duas ou três gerações, nunca viu o mapa mundi diminuindo de David Harvey na escola? Ainda no senso comum, também falamos do excesso de informação e da falta de compromisso com a verdade (como se soubéssemos o que é essa tal verdade), como quem fala da novela. Sim, há riscos aí, mas há ainda muito a ganhar. Aliás, a última coisa que quero é produzir aqui um julgamento moral das mudanças da nossa era, até porque, se é difícil prever a próxima novidade, mais ainda é prever as implicações do novo mundo sobre nós. Tudo que há é o tempo encurtado, novas comunicações a cada dia, novas relações, novos amores, novas artes... enfim, novas falas. Não só: novas falas e novos falatórios. Mas isso é tudo. Do passado aprendemos, do futuro não sabemos. O que nos serve encontrar é
Postagens recentes

Que corpo para a psicanálise?

Tenho pensado muito sobre o corpo. A prática da psicanálise online tem me mantido nesse último ano e meio numa espécie de zona de conforto, em que se fala mais com a cabeça do que com o corpo. Sintoma meu, que sempre me fez pensar de mais e fazer de menos, falar de mais e sentir de menos, mas todo sintoma, ao mesmo tempo que nos amarra, nos empurra para fora de si. Corpos esquecidos falam. Ora, não foi dos corpos negados e recalcados, reacendidos em sintoma histérico, que nasceu a psicanálise? Esse empuxo pra fora do cabeção - ou melhor, para mais dentro de uma cabeça encarnada - me levou a escrever recentemente sobre isso, e espero publicar logo. Falo da psicanálise online, porque de resto há uma certa contradição na psicanálise. A cena analítica, o divã, a associação livre… tudo isso parece fugir do corpo, como se o significante não fosse palavra encarnada. Ao mesmo tempo, a velha máxima de O eu e o isso , “o eu é antes de tudo um eu corporal”, tanto quanto essa pulsão limítrofe entr

Isso não é tudo: movimentos de imanência e transcendência entre psicanálise e Oriente

Estou partindo aqui de pensamentos que vêm, sim, da clínica, mas também e principalmente do fato de que meus cuidados e autocuidados transitam entre as macumbas, as práticas orientais, e a psicanálise. Com isso, é fácil dizer que estou transitando nas interfaces entre cuidado/saúde, subjetividade e cultura - como esse trânsito se efetiva, aí não é tão fácil. Também é necessário dizer que se trata de subjetividades encarnadas, de corpos que se movimentam, cuidam e se cuidam - mas esse assunto vem mais pra frente. Mas o que me empurra pra esse texto é: afinal, o que meditação tem a ver - ou pode ter a ver, ou nada tem a ver - com psicanálise? Não quero comparações fáceis - e vazias - nem muito menos recusas fáceis - e mal pensadas. Lembro de já ter ouvido por vezes coisas do tipo “gozo pleno é o que querem”. Bom, que descuido de Freud ter falado em nirvana pra falar de pulsão de morte também, não? Essa recusa, que acusa uma espécie de utopia do gozo pleno, padece do mesmo mal de boa p

Subjetivação e ancestralidade: para fazer psicanálise em terras brasileiras

A história de nossa terra é uma história de sofrimentos. Sem dúvida, houve por aqui quem se deu bem no meio disso. É daí que saio, porque quem inventou o racismo foi o macho branco europeu, e quem o perpetua por aqui é um certo tipo que parece ter parado no tempo não ter saído do lugar. A pergunta é: o que faz com que até hoje a branquitude tenha medo da voz dos povos desde sempre silenciados? Comecemos pelo começo: quem inventou o racismo não é o mesmo português que o manteve por aqui. Quem, pra começo de conversa, se deu bem com essa história, voltou para casa - e levou junto nossa madeira, depois nosso açúcar, depois nosso ouro, depois nosso café. Quem instaurou o carrego colonial - como chama um pessoal que faz teoria a partir dos axés - voltou pra Portugal. Quem veio pra ficar, veio porque não era bem quisto lá. E a minha hipótese é que esse é o trauma fundante da violência da branquitude brasileira - nisso, talvez quem venha da história possa me ajudar a falar melhor. Sem panos q

Não sou homem nem mulher (e nem você!)

Começo de um título arriscado - e arriscado a começar de quem fala. Sim, porque quem fala não foge de uma ambiguidade inevitável dos semblantes. Mas também porque negar o semblante também pode ser um risco. Além de falso - já que o semblante é sempre uma meia-verdade - dizer que o que se performa é só uma fachada nos põe a um passo de dizer que não importa. E sim, homens e mulheres, ser homem ou ser mulher, ou outra coisa - tudo isso importa muito. Num ingênuo "não há homens e mulheres", é preciso não esquecer que a meia-verdade do semblante se materializa, e qualquer que seja este homem-mulher que não há, violências muito concretas operam a partir dele. Apesar dos riscos, insisto no título, especialmente no “e nem você!” porque não se trata propriamente dos semblantes. Bem sabemos que os semblantes (homem/mulher), as modalidades de gozo (fálico/Outro) e as respectivas fantasias (relação com o objeto) em nada se prendem uns aos outros. Ou, com Butler: a coerência sexo-gênero-

Do Falo a Outra fala*

Há sociedades de filiação uterina em que as mulheres detém as máscaras em que a coletividade se aliena. O pênis perde então muito de seu prestígio. É só no seio da situação apreendida em sua totalidade que o privilégio anatômico cria um verdadeiro privilégio humano. A psicanálise só conseguiria encontrar sua verdade no contexto histórico. (BEAUVOIR, 2019 [1949], p. 78) A teoria psicanalítica enuncia, portanto, a verdade sobre o status da sexualidade feminina, e da relação sexual. Mas ela para por aí. Recusando interpretar as determinações históricas de seu discurso [...], e particularmente o que infere a sexuação até o presente exclusivamente masculina da aplicação de suas leis, ela se mantém presa no falocentrismo, que pretende elevar a um valor universal e eterno. (IRIGARAY, 2017 [1977], p. 117) Lacan questiona esse esquema de significação. Ele apresenta a relação entre os sexos em termos que revelam o “eu” falante como um efeito masculinizado do recalcamento, que figura como um su